Dossier
Hipnotismo, mesmerismo e sugestão: reflexões para entender aspectos da trajetória de Eduardo Eilva a partir da imposição das mãos (São Paulo no final do século XIX)
Hipnotismo, mesmerismo y sugestión: reflexiones para comprender aspectos de la trayectoria de Eduardo Silva apartir de la imposición de manos (São Paulo a finales del siglo XIX)
Hypnotism, mesmerism and suggestion: thoughts to understand aspects of Eduardo Silva's trajectory of the laying on of hands (São Paulo at the end of the 19th century)
Estudios del ISHIR
Universidad Nacional de Rosario, Argentina
ISSN-e: 2250-4397
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 13, núm. 37, 2023
Recepção: 16 Agosto 2023
Aprovação: 02 Outubro 2023
Publicado: 30 Dezembro 2023
Resumo: Este artigo analisa aspectos da trajetória de Eduardo Silva, engenheiro e famoso curador da imposição das mãos. Nascido em Gibraltar, chegou em São Paulo nos últimos anos do século XIX. Logo, muitos enfermos começaram a buscar a cura em suas mãos. Não tardou para que a polícia chegasse ao curador, de modo que ele foi indiciado e investigado pela prática ilegal da medicina. Branco, letrado e muito bem relacionado, enfrentou com tranquilidade um inquérito e o escrutínio de uma comissão médica. Através de elementos apresentados pelo médico e político Almeida Nogueira, pelos médicos da comissão instituída para investigar as curas do engenheiro e de médicos europeus discutimos aspectos da sugestão, da hipnose e como a doutrina de Mesmer contribuiu para entender os métodos terapêuticos de Eduardo Silva.
Palavras-chave: Eduardo Silva, Imposição das Mãos, Sugestão, Hipnose, Mesmerismo.
Resumen: : Este artículo analiza aspectos de la trayectoria de Eduardo Silva, ingeniero y célebre curador por imposición de manos. Nacido en Gibraltar, llegó a San Paulo en los últimos años del siglo XIX. Pronto, muchos enfermos comenzaron a buscar curación en sus manos. La policía no tardó en llegar hasta el curandero, ya que fue imputado e investigado por el ejercicio ilegal de la medicina. Blanco, alfabetizado y muy bien conectado, enfrentó con calma una investigación y el escrutinio de una comisión médica. A través de elementos presentados por el médico y político Almeida Nogueira, por los médicos de la comisión establecida para investigar las curas del ingeniero y por médicos europeos, discutimos aspectos de la sugestión, la hipnosis y cómo la doctrina de Mesmer contribuyó a comprender los métodos terapéuticos de Eduardo Silva.
Palabras clave: Eduardo Silva, Imposición de Manos, Sugestión, Hipnosis, Mesmerismo.
Abstract: : This article analyzes aspects of the trajectory of Eduardo Silva, engineer and famous healer by laying on of hands. Born in Gibraltar, he arrived in São Paulo in the last years of the 19th century. Soon, many sick people began to seek healing in his hands. It didn't take long for the police to reach the curator, so he was indicted and investigated for the illegal practice of medicine. White, literate and very well connected, he calmly faced an inquiry and the scrutiny of a medical commission. Through elements presented by the doctor and politician Almeida Nogueira, by the doctors on the commission established to investigate the engineer's cures and by European doctors, we discussed aspects of suggestion, hypnosis and how Mesmer's doctrine contributed to understanding Eduardo Silva's therapeutic methods.
Keywords: Eduardo Silva, Laying on of Hands, Suggestion, Hypnosis, Mesmerism.
Apresentação
Em 1898 um renomado curador apareceu nas páginas de periódicos de São Paulo e do Rio de Janeiro. Seu nome: Eduardo Silva; nasceu em Gibraltar, em 1843. Era engenheiro de fortificações e minas, realizando trabalhos de engenharia no norte da África e na Europa. Ele chegou ao Brasil em 1891, onde fez alguns serviços de engenharia em São Paulo. Começou a curar com as mãos nos idos de 1897 em São Paulo, e no início de 1898 virou notícia alardeando a imprensa do Rio de Janeiro.[1]
Ele atraía multidões por conta do poder de suas mãos, operando curas das mais diversas moléstias, sem fazer diagnósticos, prescrever medicamentos ou cobrar emolumentos pelos seus serviços milagrosos. Branco, letrado, e de posses, Eduardo Silva conquistou o interesse das mais diversas classes sociais por onde passava e atraia olhares de várias partes do país. Amparado por seus privilégios de raça, classe e gênero, construiu ampla rede de apoio com gente importante e poderosa do Rio e de São Paulo, o que num contexto de racialização das relações raciais constituía grande suporte e facilidades para transitar no cenário de tensão com a classe médica (Sampaio y Albuquerque, 2021).
O contexto era marcado pela atuação dos médicos no combate às enfermidades endêmicas, buscando revigorar a população, educá-la e transformá-la para inseri-la nos mundos do trabalho. Os sanitaristas se imbuíram dessa tarefa, ao denunciar a situação vil que a maioria dos sujeitos das cidades experimentava. Transformações bruscas eram realizadas nas cidades. Operações de guerra realizadas para afastar e controlar os indesejados, pretos e pobres recém-saídos da escravidão (Chalhoub, 1996). Os médicos eram fundamentais nesse processo, pois eram considerados detentores de métodos consistentes e seguros, capazes de conduzir a nação à civilização e ao progresso. O aprofundamento dessa perspectiva apontava para a construção de uma nacionalidade brasileira, segundo a qual São Paulo seria o centro civilizador e fundador de um Brasil inserido nas engrenagens do capitalismo, visto que sua “origem desbravadora e progressista” desempenhava papel fundamental (Mota, 2005: 16).
O grupo médico articulado com a legislação penal encabeçava uma cruzada anticharlatanismo (Sampaio, 2001), buscando igualmente definir com mais precisão quem eram os curandeiros e charlatões, pensando o charlatão enquanto um grande guarda-chuva que amparava diversas práticas alternativas de cura e a atuação de médicos sem diploma. Eles buscavam resguardar sua área de atuação, o saber da medicina experimental, o espaço privado do consultório e o seu lugar de prestígio na condução da nação. Eram desafios substanciais para consolidar o grupo, evitar tropeços e atingir os objetivos de tornar, a partir de São Paulo, o Brasil uma nação grandiosa. (Mota, 2005; Schraiber, 1993) Eduardo transitou com facilidade nesse cenário. Entretanto, apesar da robusta rede de apoio, em 19 de janeiro de 1900, depois de passar mais de um ano causado alvoroço ao aparecer em diversos jornais do país, depois da finalização de seu inquérito, instituiu-se uma “comissão médica” para avaliar as curas operadas por ele e confirmadas pelas testemunhas.
Discutiremos em seguida aspectos da trajetória do engenheiro e curador Eduardo Silva que realizava “curas maravilhosas” através da imposição das mãos, colocando em perspectiva a leitura dos médicos da comissão matizando com o pensamento de médicos europeus acerca da hipnose, mesmerismo e sugestão. Pretende-se com este artigo contribuir com a historiografia da Primeira República tecendo reflexões sobre as controvérsias e disputas no campo médico e como elas foram fundamentais para consolidar a República.
Os trabalhos da comissão médica: sugestão como prática curativa
Após ser noticiado em muitos jornais do país, o engenheiro Eduardo surgiu uma vez mais nas páginas de A Imprensa, que apresentou os fatos sobre uma comissão organizada para investigar seus poderes curativos. A comissão era composta pelos médicos Marcio Nery, Henrique de Sá e por Cunha Cruz, médico legista. Foi instituída pelo delegado Sá Viana, e se reuniu, pela primeira vez, no dia 27 de outubro de 1899, concluindo seus trabalhos em dezembro do mesmo ano. Acompanhada de alguns jornalistas, a comissão, chegando à residência do curador, solicitou um local para realizar os trabalhos.
Os procedimentos se organizaram da seguinte maneira: os médicos fariam o diagnóstico nos enfermos, que receberiam um cartão com o visto, que seriam em seguida submetidos às mãos do curador.[2] Antes de começar efetivamente o trabalho, muitas pessoas estavam dispostas a participar do experimento.[3] Inicialmente, os médicos selecionaram cerca de 10 pacientes para examinarem suas enfermidades antes de submetê-los ao processo de cura através da imposição das mãos.[4]
O procedimento acontecia do seguinte modo: de posse de um cartão, os doentes ingressavam no consultório do Dr. Silva, para experimentar o poder de suas mãos. Ao sair, as pessoas eram examinadas mais uma vez pelos médicos da comissão, que averiguavam os resultados obtidos. Os enfermos ao portarem cartões disponibilizados pela comissão tinham direito a atendimento preferencial e a vantagem de poder realizar consulta com o Dr. Eduardo Silva em dias alternados. Em contrapartida, eles eram obrigados “a comparecer de vez em quando ao consultório de um dos membros da comissão, para ser observada a marcha da moléstia”. Em outras palavras, os doutores tinham de acompanhar de perto “a marcha da moléstia em todos os enfermos” e precisavam ainda averiguar a evolução obtida no processo.[5] O propósito era realizar uma comprovação científica do método de cura empregado pelo engenheiro, embora muitos outros curadores não tivessem tido a mesma oportunidade. A comissão fazia visitas aleatórias à residência do curador para observar melhor seus procedimentos. “O dr. Eduardo Silva pediu à comissão que levasse o maior número de doentes que pudesse, mas de moléstias variadas: tísica, morfeia, paralisia, etc”.[6]
A comissão não operou conforme o previsto, pelo menos de acordo com a visão expressa pelo jornal A Imprensa. De acordo com o periódico, houve falta de transparência na divulgação dos dados coletados durante o acompanhamento dos pacientes. Por causa disso, o jornal enviou seus repórteres para investigar os acontecimentos no âmbito da comissão.[7] Ficou evidente que os médicos estavam tentando desacreditar o método de cura de Eduardo Silva. Ficava nítido que havia uma sabotagem deliberada contra aqueles que afirmavam terem sido curados pelo tratamento do engenheiro, casos que os jornalistas engajados na causa do curador buscavam defender. Para sustentar suas alegações sobre a resistência dos médicos em relação à eficácia do poder de cura de Eduardo Silva, o periódico procurou figuras de destaque para abordar o assunto. Inicialmente, foi divulgada uma carta escrita pelo assistente de Eduardo Silva, o advogado Maurity de Calimério, na qual refutava os argumentos do médico da comissão, Dr. Henrique de Sá, apresentando a perspectiva de um médico que acompanhou de perto o processo de cura do engenheiro. Tratava-se do médico Soares do Couto, que estudou e verificou as curas realizadas, procurando sempre que possível visitar pessoalmente os enfermos. O médico disse que observou cientificamente durante cinco meses os procedimentos realizados pelo curador, não chegando a um resultado definitivo, mas acreditava que “as curas eram incontestáveis”.[8]
Além do médico, o delegado Sá Viana, encarregado de conduzir a investigação contra Eduardo Silva, também se pronunciou. Segundo ele, ficou claro que o acusado não estava envolvido em nenhuma das infrações previstas pelo Código Penal, e todas as testemunhas concordaram ao afirmar que, de fato, o engenheiro tinha habilidade curativa. No entanto, nenhuma delas conseguiu especificar qual era exatamente o método curativo utilizado pelo engenheiro. O “dr. Silva cura [...] porque tem exemplos em pessoas de sua família, que sofriam de moléstias absolutamente incuráveis pelos processos a que se refere a comissão”. Na visão do delegado, Eduardo Silva dispunha “de um poder curativo desconhecido da ciência, cujo ciclo de descobertas, na sua opinião, ainda é muito limitado”.[9]
Tanto nas argumentações do delegado Sá Viana quanto nas do médico Soares do Couto a realidade das curas estava presente, mas havia uma incerteza sobre o método utilizado para alcançá-las. Isso evidencia que a questão central era a ausência de um diploma que autorizasse a realização dessas atividades. Naquele contexto de diversos avanços científicos, tornou-se imperativo que a própria ciência, frequentemente colocada acima do bem e do mal, fornecesse uma resposta satisfatória. Foi por essa razão que o delegado, que acreditava nos poderes curativos do engenheiro e, de certa forma, o protegia, criou uma comissão médica para investigar as curas realizadas por Eduardo.
Não obstante as críticas vindas de A Imprensa, a comissão concluiu suas atividades no final de dezembro e divulgou relatório detalhado nas edições de 15 e 22 de janeiro e 1 e 8 de fevereiro de 1900 no periódico O Brasil-Médico. Segundo o relatório, foram examinados “cinquenta enfermos de várias espécies [...], sendo parte desses enfermos indicadas pelo sr. Eduardo Silva”. Após receberem o diagnóstico, os enfermos se apresentaram ao curador portando o cartão de um dos médicos da comissão, para dar início ao tratamento. A fim de garantir a execução mais eficaz dos trabalhos, foram estabelecidas as seguintes diretrizes entre a comissão e o engenheiro: a) “que, desde a sua entrega ao tratamento, os enfermos se sujeitariam a voltar ao consultório de Eduardo Silva nos dias por ele marcados”; b) “que os denominados doentes da comissão médica teriam preferência a serem recebidos, desde que se apresentassem”; finalmente, “que esses enfermos procurariam, em seus respectivos consultórios, os membros da comissão, cujo cartão receberam, a fim de que os efeitos do tratamento fossem verificados convenientemente”.[10]
Após a definição das diretrizes para facilitar a realização dos procedimentos de verificação, a comissão observou o método pelo qual Eduardo Silva conduzia o processo de cura. Eles chegaram à conclusão de que a imposição das mãos era o método geralmente empregado pelo curador, pois em outras ocasiões, o curador apenas tocava com a parte interna de suas coxas a parte externa das coxas do paciente, que estava sentado em sua frente, enquanto colocava suas mãos "espalmadas na parte anterior das mesmas coxas". Com o tempo, o engenheiro percebeu que os enfermos conseguiam resultados mais satisfatórios “quando colocava as mãos na parte dolorosa ou na sede da moléstia” e “modificou o processo antigo em relação à colocação das mãos, que são hoje aplicadas sobre a sede aparente da afecção”. Além da prática da imposição das mãos, os médicos observaram que, em algumas circunstâncias, Eduardo Silva tentava convencer as pessoas de que a doença era de fácil cura por meio da palavra, fazendo referência a versículos bíblicos ou aforismos apropriados para a situação. Outro aspecto notável foi o uso de água magnetizada, na qual ele molhava os dedos, um método que, segundo os médicos, ele usava para transmitir seu suposto fluido vital. Essa mesma água era empregada para umedecer "lenços, flanelas e cobertores", que posteriormente eram enviados aos pacientes que não tinham condições de comparecer ao consultório.[11] Aparentemente, a comissão estava bastante empenhada em garantir a transparência do processo, com o propósito de esclarecer do que se tratava, para então prosseguir com os procedimentos relacionados à observação das curas realizadas por Eduardo Silva.
Contudo, surgiram objeções em relação ao relatório, já que o médico Cunha Cruz não estava totalmente de acordo com os argumentos e as conclusões de seus colegas. Ele atuava como médico legista da polícia e era declaradamente simpático ao positivismo, abordando a prática do espiritismo e outras questões relacionadas à controversa questão da liberdade profissional na medicina a partir da perspectiva das doutrinas de Comte.[12] O doutor Cunha Cruz acreditava realmente nas curas realizadas pelo engenheiro, e por isso, Eduardo não poderia ser sentenciado: porque não era possível provar que a psicoterapia, “um caso de atenção mantida”, causasse algum mal; porque “qualquer repressão afetaria, em tais condições, a liberdade individual ou de consciência do cidadão” previstos no artigo 72 parágrafo 24 e no artigo 78 da Constituição.[13] Havia um impasse no entendimento de como os procedimentos curativos de Eduardo Silva funcionavam. É sobre isso que trataremos no tópico a seguir.
O caso Eduardo Silva sob as lentes do médico e político Almeida Nogueira: uma ciência por trás da imposição das mãos.
Em agosto de 1898, o médico e senador Almeida Nogueira proferiu um discurso acerca da liberdade profissional. Eduardo Silva e o médico-político eram velhos conhecidos. Com a notoriedade que conquistou em São Paulo e no Rio, os órgãos de higiene começaram a combater a prática curativa da imposição das mãos. O charlatanismo era uma questão perene. Vinte anos à frente, no Congresso Nacional dos Práticos, em 1922, integrantes do evento registravam suas angústias com a situação. Argumentavam que “ignorância” e “ingenuidade” justificavam as cenas de charlatanices no país, o que importunava “muita gente qualificada”. De acordo com os congressistas, isso acontecia porque as várias classes sociais não acreditavam na ciência, que apesar da autoridade que tinha, possuía um baixo poder de resolução, fazendo com que a concorrência com outras práticas curativas fosse grande (Pereira Neto, 2001: 20; 89-90). Se na década de 1920, a situação era tal, no limiar do século XX era ainda mais tensa (Rocha, 2020; Silva, 2022).
Os esculápios paulistas confrontados pela atitude do senador viviam um período em que buscavam projetar São Paulo como centro civilizador e criador de um Brasil inserido nas engrenagens do capitalismo, visto que sua “origem desbravadora e progressista” desempenhava papel fundamental na história do país (Mota, 2005: 16). Confrontando essa abordagem e de algum modo contribuindo para o que André Mota chamou de tropeços da medicina bandeirante, Almeida Nogueira refletiu sobre aspectos científicos por trás do magnetismo, relacionando-o aos fenômenos realizados por Eduardo Silva. Segundo o médico, a ciência oficial evitava discutir os “estranhos fenômenos cujo estudo começa a preocupar o mundo científico”. Argumento semelhante ao do delegado Sá Vianna. Durante sua fala, o senador Ezequiel Ramos questionou se Nogueira referia-se à magia.[14]
Em resposta a Ramos, o médico-político abstraiu os aspectos místicos que envolviam a imposição das mãos, reconhecendo sua dimensão de “ciência admirável, baseada na experiência e na observação, digna de atrair os mais nobres e os mais cultos espíritos”. Ao abstrair aspectos místicos, Nogueira procurava dar ares científicos e afastar o engenheiro, principalmente, do espiritismo. Durante a idade média, a intolerância levou às fogueiras gente como Eduardo Silva. No século XX, “na última fase do século das luzes”, o órgão de higiene paulista não condenava o engenheiro à fogueira, mas o encarava como feiticeiro obstruindo um direito constitucional, na tentativa de interromper sua “missão humanitária de aliviar o sofrimento alheio”.[15] Os argumentos do político tropeçavam no esforço dos médicos, que edificavam suas próprias bases de construção do conhecimento e de um corpo institucional próprio para gerenciar e conduzir seus projetos e fazer frente a ataques como os de Almeida Nogueira. Segundo Márcia Silva (2003: 150-151), tal elaboração se orientou por três vias: a medicina experimental, realizada em laboratórios; consolidação de um “lugar especial” para os especialistas do estado; criação de uma nação ajustada aos “processos de modernização e transformações científicas e culturais”.
O principal objetivo de Almeida Nogueira era proteger Eduardo Silva das acusações da Diretoria de Serviço Sanitário. Ele estava convencido de que o processo de cura do engenheiro merecia ser estudado pela ciência oficial, que rotulava Eduardo Silva como um "feiticeiro". Sua narrativa se concentrou em identificar os elementos técnicos e científicos que, em sua visão, explicavam as curas, fazendo uso do magnetismo animal e vinculando-o às descobertas científicas da época. De acordo com o senador, a existência de uma força extracorpórea, que poderia ser manifestada e até mesmo fotografada, era reconhecida pelos maiores sábios do mundo, a fim de descartar a possibilidade de alucinação individual ou coletiva.[16]
A narrativa do senador continha elementos que ele considerava pertencer a uma espécie de "ciência do maravilhoso". Ele reforçava a ideia de que a troca de informações era interpretada de maneira variada por grupos e indivíduos, assumindo a forma que suas crenças permitiam. Isso ocorria em um contexto no qual a linha entre ciência e sobrenatural muitas vezes se dissipava, dependendo dos interesses do interlocutor, uma vez que os limites não estavam claramente definidos. De qualquer forma, o argumento de Almeida Nogueira tinha mérito, pois instigava a ciência oficial a investigar e avaliar os métodos de cura de Eduardo Silva. O senador fundamentou sua argumentação com base em estudos relacionados ao magnetismo animal. Segundo ele, os mais recentes trabalhos realizados nesse campo "altamente interessante" comprovavam a existência de um estado de matéria que, excluindo qualquer aspecto metafísico nas concepções empíricas ou qualquer elemento místico nas crenças de adeptos sistemáticos, era considerado puramente material. Essa substância era imperceptível aos sentidos em seu estado normal, não podendo ser tocada ou observada a olho nu. Sua existência só poderia ser deduzida a partir de seus resultados ou em condições especiais cuidadosamente estabelecidas pelos pesquisadores, ou então, esperada pacientemente por eles.[17] Na concepção do espiritismo, a substância imperceptível era o perispírito, que poderia ser manipulado com os passes para reestabelecer o equilíbrio dos fluidos corporais, operando assim a cura de algumas enfermidades (Weber, 2008).
No entanto, ele não citou a análise de nenhum estudo que tratasse de um "estado da matéria" imperceptível. Com base nesse argumento, ele procurava estabelecer os fundamentos da materialidade do fluido magnético, buscando dar legitimidade às teorias de Franz Anton Mesmer. Além disso, ele destacava que o próprio Código Penal de 1890 reconhecia a prática da cura por meio da aplicação do magnetismo, desde que fosse realizada por profissionais habilitados, como era o caso do médico Monteiro de Barros, proprietário do consultório onde Eduardo Silva realizava seus tratamentos. Portanto, ele acreditava que a Diretoria do Serviço Sanitário agiu de maneira inadequada ao preferir a "ridícula artimanha" de considerar que, no consultório médico do Dr. Monteiro de Barros, Eduardo Silva não realizava curas por magnetismo, mas sim por meio de práticas diabólicas e supersticiosas. Depois disso, explicou como a cura pela ação do fluido magnético funcionava: no corpo doente a circulação sanguínea seria imperfeita, e o fluido vital escasso; perdendo esse fluido o corpo se tornaria impotente, podendo-lhe chegar à morte física.[18] Almeida Nogueira, no afã de apresentar uma maravilha da ciência, com o oxímoro que a expressão pode causar, fornecia elementos para as autoridades médicas enquadrarem o curador no exercício ilegal da medicina.
Ele seguiu suas explicações: quando fluido vital se esgotava no corpo, acontecia a morte material, já que “o intermediário que proporciona a ação do espírito sobre o corpo, pelo princípio da afinidade”, deixa de cumprir seu papel. Isso implica que a doença era vista como resultante da obstrução da circulação do fluido vital, e a recuperação da saúde ocorria quando essa circulação era restabelecida. Durante o transe, em certos momentos, ocorria uma "agitação notável", que correspondia ao momento em que o magnetizador manipulava os fluidos de um enfermo para reativar a circulação. Refletindo sobre os fenômenos do espírito, ele apresentou o livro de Alberto Rochas, “uma obra de ciência experimental, que traz curiosas reproduções de clichês fotográficos de fluido amorfo e do que imperfeitamente se poderia chamar o corpo da alma, que os espíritas denominam perispírito e os ocultistas corpo astral”.
As comparações feitas pelo senador entre o espiritismo, o ocultismo e o mesmerismo vão além do escopo inicial do médico alemão.[19] É provável que Mesmer não tenha previsto que seus estudos teriam um impacto tão significativo e se expandiriam para influenciar diversas áreas. No entanto, alguns estudos indicam que o próprio Mesmer estava interessado em secularizar as explicações para o imaterial que, anteriormente, eram atribuídas a forças do além-mundo. Ele buscava oferecer uma alternativa científica à narrativa e práticas religiosas.[20] O século XVIII foi caracterizado como um "século de sistemas" e marcado pelo "empirismo e experimentalismo". Nessa época, os cientistas procuravam explicar todos os fenômenos a partir de um número limitado de princípios, frequentemente adentrando territórios que se assemelhavam à ficção. Mesmo com a separação crescente entre teologia e ciência ao longo do século XVIII, a ciência não estava completamente livre da necessidade de recorrer à imaginação. Os cientistas frequentemente precisavam usar sua criatividade para interpretar os dados obtidos por meio de microscópios e telescópios (Darnton, 1987: 20-21).
Em seguida, Nogueira ofereceu explicações físico-químicas, argumentando acerca da existência do fluido magnético. O fato de algo ser invisível e intangível "em circunstâncias normais" não implicava na sua inexistência, uma vez que as “forças mecânicas mais poderosas como o vapor e a eletricidade são de substância invisível e impalpável; não obstante são materiais, são corpos, que podem passar daquele para outro estado”. É importante recordar que todas essas perspectivas surgiram durante o contexto da Revolução Francesa, período em que ideias científicas exerciam um forte impacto sobre a imaginação das pessoas que testemunhavam essas mudanças, resultando numa fragilização da linha divisória entre ciência e o sobrenatural (Darnton, 1987: 36).
Ademais, as mudanças trazidas pela Segunda Revolução Industrial eram uma preocupação constante, com descobertas significativas que moldavam o mundo e proporcionavam avanços significativos nas áreas médica, de transporte e infraestrutura (Hobsbawm, 2016; Sevcenko, 1999). Foi a partir desse contexto que o senador desenvolveu sua narrativa, lançando mão dos estados da matéria para elucidar a existência e o funcionamento do fluido magnético. Ele argumentava que, assim como a matéria possui estados sólido, líquido e gasoso, também continha o fluido magnético, de algum modo contido no estado gasoso. O fluido “é uma modificação do estado líquido, assim como o líquido o é do sólido”. Os estados da matéria eram “meramente acidentais na matéria” e poderiam “passar sucessivamente de uns para outros”. Concluiu, portanto, que em todos os reinos da natureza a morte era apenas uma transformação do estado da matéria, mas a essência era eterna.[21]
Talvez os elementos apresentados componham os fundamentos científicos da narrativa do senador. Na sequência utilizou alguns exemplos, procurando ser didático e sensibilizar os colegas de tribuna. Lançou mão da água como exemplo para ilustrar seu argumento de transição dos estados da matéria, incluindo um estado fluídico que acontecia com o aumento do calor. Assim, havia uma série de “materiais em estado fluido e todo o espaço do infinito é ocupado pelo fluido universal”.[22]
Após apresentar os elementos e exemplos relacionados aos estados da matéria e como ela poderia transitar de um estado para outro sem perder sua natureza fundamental, o senador passou a ponderar que, se todos os corpos vivos possuíam fluido, não seria surpreendente que ele pudesse ser transmitido para uma matéria semelhante. Ele fundamentava essa ideia afirmando que, “pela lei da física (...) toda a matéria de natureza simpática tende a se unir, e de natureza antipática a se repelir”. Assim, um corpo morto não poderia receber a influência do fluido vital, mas os corpos vivos sim. O senador reiterou seu argumento sobre o processo curativo no magnetismo animal: afirmando que o corpo humano dissipava um fluido que atuava sobre os seres vivos.[23]
A narrativa do senador buscava dar legitimidade científica ao procedimento curativo empregado pelo engenheiro Eduardo Silva, ao passo que buscava defendê-lo das investidas do órgão de higiene paulista, ocupado por médicos que também compartilhavam o ideário de uma missão civilizadora e de inserir São Paulo e o país nas engrenagens do capitalismo (Mota, 2005). Buscava afastá-lo igualmente das dimensões místicas do magnetismo, qual seja, o espiritismo criminalizado no Código Penal de 1890 e de outras variedades de aspectos sobrenaturais que poderiam fragilizar seu argumento acerca da cientificidade da imposição das mãos. Tal narrativa revelou, igualmente, aspectos relevantes da compreensão de brasileiros da época sobre elementos que estavam sendo pesquisados na Europa. Nesse contexto, é importante explorar como essas discussões se desdobravam no Velho Continente e como os europeus compreendiam o magnetismo animal, que se desdobrou em várias vertentes, incluindo tanto abordagens científicas, como o hipnotismo, quanto aspectos mais místicos, como o espiritismo.[24]
Mesmerismo e Hipnose nas letras de médicos europeus: reflexões sobre o caso Eduardo Silva
Na antiguidade era conhecida como magia, o que os contemporâneos de Eduardo Silva conheciam como hipnotismo. Em paralelo, “as curas extraordinárias de doenças nervosas que, no tempo dos egípcios, ocorriam no templo de Serapis eram, quase sem qualquer dúvida, efeitos de sugestões hipnóticas”. Após apresentar a historieta do hipnotismo, argumentando que a prática existia desde a antiguidade – apesar de desconhecida para seus praticantes, que ganharam consciência sobre a prática a partir do século XIX –, Joseph Lapponi (1907: 2-5) argumenta que Franz Anton Mesmer contribuiu fundamentalmente para a compreensão dos segredos da hipnose que foi “cuidadosamente mantido em segredo por seus predecessores”. Boa parte desses segredos foi o que Mesmer entendeu por magnetismo animal. Ele estudou medicina, defendendo sua tese, com o título “Sobre a influência dos planetas”, em 1766, com uma mistura de astrologia com as ideias de Izaac Newton. Ainda na Áustria, ele estabeleceu uma clínica para aplicar suas pesquisas, colaborando com um professor jesuíta de astronomia. Mais tarde, por influência do curandeiro suábio, J. J. Gassner, ele percebeu que poderia tratar doenças manipulando o fluido magnético, sem a necessidade de utilizar ímãs (Darnton, 1987: 49).
Após praticar sua técnica e difundi-la, o médico austríaco enfrentou a resistência da Faculdade de Medicina em Viena, onde foi acusado de exercer “práticas charlatanescas”. Os revezes em Viena fizeram com que ele seguisse para Paris, em 1778, quando conheceu Charles d’Eslon e começou a aplicar seus métodos, fazendo fortuna com bastante adesão de cientistas amadores, o que chamou a atenção da Faculdade de Medicina. Isso o levou a enfrentar seus primeiros desafios com a Academia de Ciências e a Sociedade Real de Medicina de Paris. Ambas as instituições solicitaram a formação de comissões para investigar o magnetismo animal. Elas concluíram seu trabalho em 11 de abril de 1784.[25] Segundo o parecer das comissões, a “imaginação sem magnetismo” produzia convulsões, já “o magnetismo sem imaginação” nada produzia, concluindo que não havia comprovação da existência do fluido magnético. Era uma coisa sem utilidade, pois os “efeitos violentos observados no tratamento público” pertenciam ao toque, à imaginação e à “imitação mecânica, que nos leva, apesar de nós mesmos, a repetir o que atinge nossos sentidos” (Quétel, 1988). Eis uma conclusão do século XVIII, momento anterior ao que Almeida Nogueira refletia sobre os efeitos físico-químicos do fluido invisível, inviabilizando seus argumentos. Nesse sentido, Nogueira era de algum modo anacrônico ao defender seus interesses pessoais e de seu amigo, engenheiro e curador.
As conclusões das comissões, no entanto, complicaram a situação de Mesmer. Elas enxergaram sua prática como prejudicial para a sociedade, para a moral e para a saúde física daqueles que se submetiam aos seus métodos. Em resultado, algo parecido com o exarado no relatório da comissão que investigou o caso de Eduardo Silva. Contudo, os pareceres das comissões destoavam completamente da defesa emocionada que Almeida Nogueira fez do curador. O relatório, encomendado pelo governo, foi compilado, impresso e amplamente divulgado em aproximadamente 20 mil cópias. Como resultado, o médico deixou a França no início de 1785.[26] Em resumo, o mesmerismo era capaz “de curar uma grande quantidade de enfermidades” (hidropisia, paralisia, gota, escorbuto, cegueira, surdez acidental, etc.) “consistia na aplicação” de um fluido manipulado, às vezes com uma haste de ferro, outras com seus dedos.[27] Além disso, ele usava uma cuba, ligada por cordas que os “doentes enrolam em torno de si, e hastes de ferro” que colocavam “perto da boca do estômago, do fígado ou do baço, e em geral perto do local dos seus corpos que está afetado”. Tais métodos lançavam “seus pacientes em espasmos de tipo epiléptico ou transes sonambúlicos e curando” suas enfermidades (Darnton, 1987: 14; 16). Os argumentos de Lapponi (1907: 5; 7) vão em outra direção. Segundo ele, muitos dos elementos do mesmerismo tinham origem na hipnose como “a cadeia de mãos, a cuba, fixação do olhar, contatos, ruídos inesperados”. Igualmente, “os ímãs, as mãos e os olhos de certos indivíduos poderiam ter uma ação física sobre os outros, através de um fluido especial que emanava de seu organismo”.
Entretanto, a condenação do médico austríaco pelas comissões da Academia de Ciências e da Sociedade Real de Medicina não conseguiu deter as discussões em torno de seu trabalho e o desenvolvimento de novas teorias, tornando Mesmer um divisor de águas na história. A princípio porque como fruto do século das luzes, ele oferecia uma alternativa “científica” às visões religiosas que relacionavam fenômenos naturais a entidades do além-mundo (Rocha, 2020: 157). Mesmo assim, suas ideias circularam amplamente e foram ressignificadas reforçando o que de alguma maneira ele combateu. Nascia uma variedade de mesmerismos! As ideias de Mesmer saíram de seu controle e “corriam desenfreadamente por regiões sobrenaturais, onde ele achava que não tinham o direito de ir” (Darnton, 1987: 66; 67; 69).
Um ano após a condenação do médico austríaco, um “charlatão siciliano de origem judaica, Joseph Balsamo”, utilizou a doutrina de Mesmer, mesclando-a com elementos da física, da química, de “outras ciências ocultas” e com “excentricidades e superstições de todos os tipos”. Com exceção das superstições, das excentricidades e das mescla com elementos do ocultismo, havia alguma semelhança com o que Almeida Nogueira lançara mão para defender o engenheiro. Além disso, associou-a a práticas análogas ao que posteriormente ficou conhecido como espiritismo, num exercício que foi associado ao misticismo ligado ao magnetismo animal. Segundo Lapponi (1907: 9–10), o resultado de tais tentativas foi relacionar o mesmerismo ao espiritismo numa “confusão infeliz”.[28] Foi dos efeitos dessa infeliz confusão que o senador Almeida Nogueira queria livrar Eduardo Silva, ao se expor na tribuna aos colegas. A fala do senador tinha por objetivo também afastar Eduardo Silva de práticas como o espiritismo, criminalizado pelo Código Penal de 1890.[29] Para Célia Arribas, os espíritas foram constrangidos pelas mudanças legais trazidas com a República e pela noção contemporânea de Saúde Pública. Isso porque alguns deles acreditavam que curavam enfermidades físicas e espirituais por meio de “passes magnéticos”[30] (Arribas, 2008: 328).
Após a apresentação do que ele chamou de infeliz confusão, Lapponi passou a analisar o movimento que culminaria na lapidação do hipnotismo como ciência. Quando “a doutrina de Mesmer foi combatida em nome da ciência oficial”, seu discípulo, o marquês de Puységur, em 1784, descobriu o sonambulismo artificial. Em 1787, Lyonnas Petetin fez descobertas acerca da catalepsia artificial. Em 1810, “o general Noizet apresentou na Academia de Berlim um livro de memórias sobre o sonambulismo e o magnetismo animal”. Ainda naquele contexto, um padre português, de nome Faria, com relações com a Índia, estudou muitas práticas hipnóticas e negou a existência de qualquer fluido magnético, tentando demonstrar que tudo no magnetismo animal não passava de imaginação (Lapponi, 1907: 11). Todos esses elementos, discutidos entre o final do século XVIII e início do XIX, não fizeram parte do relatório da comissão médica que investigou o caso de Eduardo Silva, tampouco o discurso de Almeida Nogueira. Isso significa que as bases pelas quais o estudo da comissão foi conduzido era diferente daquela discutida e operada na Europa.
O sonambulismo e a catalepsia foram componentes de algumas técnicas hipnóticas que eram induzidas por meio de estímulos sonoros, toques e palavras específicas. Para a comissão que investigou as práticas de Mesmer, esses fenômenos não tinham relação com o fluido magnético; pelo contrário, acreditava-se que eram produzidos pela imaginação do hipnotizado. É possível que o argumento de Lapponi baseie-se na assimilação das premissas do parecer da comissão e na negação das próprias premissas de Mesmer. Mesmo Mesmer não fazendo ideia de que o magnetismo animal era fruto da imaginação, acabou descobrindo algo fundamental para a ciência médica que se desenvolvia: a capacidade da mente ou da imaginação na indução da cura de algumas enfermidades. Dessa perspectiva, após a condenação de Mesmer, surgiram indivíduos que distorciam suas ideias e outros "com uma inteligência superior" que se esforçavam para dar uma compreensão científica às propostas do médico austríaco.
A partir de 1826, iniciaram-se algumas tentativas de esclarecer a natureza do magnetismo animal. Isso ocorreu quando Fosissac solicitou, em 1825, uma revisão do relatório da comissão apresentado à Academia de Medicina de Paris em 1784. Após um intenso debate, a Academia concordou em realizar a revisão e nomeou uma comissão que investigou o assunto ao longo de seis anos, quando apresentou “um valioso relato em que grande número de fatos, físicos e psíquicos, relacionados ao ‘magnetismo animal’, foram reconhecidos com exatidão”. Mas, de acordo com Lapponi, a comissão se confundiu em alguns pontos, ao aceitar como verídicos alguns “fenômenos duvidosos, incertos, ou absolutamente equivocados”, o que dificultou a evolução dos estudos sobre o hipnotismo. Em outras palavras, o autor considerou a tentativa de Fosissac de reavaliar o relatório da comissão de 1784 como legítima, porém, os resultados obtidos foram decepcionantes, já que a confusão em torno do mesmerismo persistiu (Lapponi, 1907: 12-13). Apesar da parcialidade de Lapponi em sua análise, seu trabalho é notável por ilustrar o processo de desenvolvimento da hipnose e, de certa forma, por destacar a distinção entre o que era considerado magia/superstição e o que se acreditava ser a ciência da época (Rocha, 2020). De sua parte, e com interesses aparentemente pessoais, Almeida Nogueira buscava posicionar Eduardo Silva ao lado da ciência, o afastando do campo da magia e da superstição.
Onze anos depois da revisão do relatório, em 1843, algumas mudanças passaram a acontecer. Naquele ano, James Braid, um cirurgião inglês, avaliou os fatos apresentados pelos discípulos de Mesmer, reafirmando alguns deles. Mas com o objetivo de “impedir que os antigos nomes de mesmerismo e magnetismo animal continuassem a obstruir a difusão e aceitação da verdade, ele deu a todas as suas observações o nome de neuro-hipnologia”, inaugurando os estudos da neurologia e do hipnotismo. Braid deu um passo crucial para distinguir magia e ciência, no que concerne à relação entre mesmerismo e hipnotismo. Ele realizou uma operação que submeteu as premissas testáveis de Mesmer a categorias específicas, enquanto as que não podiam ser testadas foram associadas ao magnetismo animal. Apesar de reconhecer os avanços apresentados por Braid, Lapponi considerou que a separação entre magnetismo animal e hipnotismo estava equivocada, pois, o magnetismo animal não poderia ser associado ao charlatanismo ou a fraude, elemento que ficou visível nos argumentos de Braid.
Lapponi não deixou de reconhecer a relevância das contribuições do cirurgião inglês para o avanço dos estudos sobre o hipnotismo. O trabalho de Braid continuou a ser disseminado e debatido após 1850. Os elementos por ele observados “foram novamente examinados por Mensnet, Demarquay, Giraud-Teulon, Duval, Richet”. Por fim, Lapponi atribuiu a um grupo de médicos os avanços científicos acerca do hipnotismo: Charcot, Bernheim, Liébault, Liégeois deram ao “hipnotismo o desenvolvimento e as bases científicas”, fazendo com que os cientistas acolhessem tais fatos. Demonstraram também que “o mesmerismo artificial, sonambulismo ou catalepsia, sono nervoso, bramanismo, hipnotismo”, eram uma coisa só (Lapponi, 1907: 12; 17).
As bases científicas do magnetismo animal estavam associadas ao mesmerismo induzido, ao sonambulismo ou catalepsia, ao sono nervoso, ao bramanismo e ao hipnotismo, todos resultantes dos mesmos princípios descobertos e/ou introduzidos por Mesmer. Todo o esforço que ele empreendeu para traçar a história do hipnotismo, desde sua referência aos egípcios até sua abordagem da Antiguidade e da Idade Média, estava ligado ao que posteriormente desenvolveram Charcot, Bernheim e Liébeault. Para Mesmer, alguns sujeitos tinham a habilidade de influenciar outros indivíduos, pela existência e manipulação de um fluido universal. A imposição das mãos é uma maneira difusa de explicar o mesmerismo e suas variantes. Após a circulação de suas ideias, uma série de estudos foram desenvolvidos para entender o magnetismo animal, alguns enfatizando a parte mística da teoria direcionando para o que na época era compreendido como superstição; outros indivíduos continuavam enfatizando a importância do fluido magnético para a prática do magnetismo animal; mas alguns tentaram lapidar a teoria de Mesmer, nem sempre com sucesso, apontando para caminhos críticos permitindo que suas premissas fossem testadas, o que proporcionou gradativamente a substituição do fluido magnético pela dimensão da hipnose e da sugestão, como potencializadores da ação curativa num organismo (Rocha, 2020: 160).
A importância de Mesmer reside em seu pioneirismo nos estudos do inconsciente, separando-o da religião. Em resumo, ao considerarmos a conexão entre o médico austríaco e o desenvolvimento do magnetismo animal para a hipnose, destacamos figuras como Puységur, Braid, Charcot, Bernheim, Liébeault e, acima de tudo, Freud. Freud foi um dos contribuintes mais significativos para que as discussões e debates que o precederam, juntamente com outras influências do contexto em sua trajetória, culminassem no surgimento da psicanálise. Em outras palavras, apesar do “fracasso de Mesmer, todo o século XIX estava impregnado pela ideia do magnetismo” (Quétel, 1988). Essa discussão chegou ao Brasil sendo principalmente conduzida dentro do círculo médico. No entanto, Eduardo e outros curadores e curandeiros de sua estirpe demandaram involuntariamente um debate mais amplo. Isso ocorreu porque a comissão médica, nomeada pelo delegado Sá Viana, mesmo sem chegar a um consenso, acreditava que Eduardo Silva realizava curas por meio da sugestão.
A comissão chegou à conclusão de que os resultados foram insignificantes, pois nos “cinquenta casos, convém confessar, os resultados foram medíocres” e a “sugestibilidade dos nossos doentes foi, talvez, também medíocre”. Continuou: “As condições de êxito fracassaram, com o temor do insucesso por parte do enfermo e do operador? Ou a fé do maravilhoso arrefeceu com a epidemia de curandeiros que surgiram de todos os cantos?”. Finalmente, invalidaram a cura por meio do “fluido vital”, processo através do qual Eduardo Silva dizia curar. A comissão pôs a “hipótese do fluido vital” de lado, mas, “mesmo que não abríssemos mão dela, não poderíamos pensar em uma diminuição de sua reserva, porquanto, como nos disse EDUARDO SILVA, quanto mais o emprega, mais o tem”. Assim, eles utilizam o próprio argumento do curador para questionar seus métodos. Por eliminação do "fluido vital" e do "mesmerismo", restava apenas a sugestão, que demonstrara sua eficácia variável de acordo com a crença do indivíduo e sua capacidade de concentrar a atenção no efeito desejado.[31] Diferente das reflexões de Lapponi que mobilizou noções, conceitos e teorias, os médicos da comissão operam muito mais a partir da observação e do experimentalismo para invalidar o argumento de que Eduardo curava pela manipulação dos fluidos vitais.
Eles desconheciam ou optaram por não abordar a cura por meio da imposição das mãos, e a hipótese mais plausível para eles era a da sugestão. No entanto, as características típicas da sugestão estavam ausentes nas descrições das curas fornecidas pelos depoentes e pelo próprio Eduardo Silva, e os resultados obtidos eram fracos e "medíocres". Assim, para enquadrar o engenheiro Eduardo no crime de exercício ilegal da medicina, a comissão tentou afastar o “hipnotismo” da “sugestão”, uma vez que as testemunhas informavam que ele não usava a hipnose, pois não atingiam o estado de sonolência, acompanhando todo o processo curativo com atenção.[32] Existem alguns estudos que analisam a questão e mostram que usar a sugestão sem a hipnose era algo possível na época.
De acordo com Lapponi, os “fenômenos objetivos e sensíveis pelos quais se manifesta o hipnotismo (...) podiam se reduzir a três: a letargia, a catalepsia, e o sonambulismo”. Tais fenômenos poderiam acontecer sucessivamente, de maneira alternada ou separada. Se analisarmos o ponto de vista da comissão de que a sugestão pode ocorrer em estado de vigília, a única conexão plausível com as descrições de Lapponi seria o hipnotismo durante o estado de letargia. Segundo o autor, a letargia acontecia em quatro graus: no primeiro, existia um breve estado de sonolência, com o torpor dos membros; no segundo grau, o sono era real, mas os indivíduos compreendiam tudo à sua volta; no terceiro, o sono era mais denso, mas os hipnotizados compreendiam vagamente o que se passava a seu redor, mas não registravam nada que havia acontecido; no quarto grau, o sono era completo e o indivíduo estava isolado de tudo que ocorria a seu redor, exceto da relação com o hipnotizador (Lapponi, 1907: 56; 71).
O estado de letargia é o que mais se assemelha à sugestão em estado de vigília. Não temos certeza se, naquela época, eram considerados sinônimos, mas é plausível que, para os médicos da comissão, os estágios iniciais da letargia fossem o estado no qual Eduardo Silva aplicava a sugestão. No entanto, eles não prosseguiram com uma análise mais profunda e se limitaram a criar uma narrativa evasiva. Lapponi (1907: 72-73) fez uma descrição dos indivíduos quando entravam no estado de letargia. De acordo com o autor, o sujeito continuava imóvel, “com os membros inertes e pesados, sem vestígios de rigidez, como um homem profundamente adormecido”. A pele esfriava, e uma fina camada de suor aparecia, a respiração e o pulso se tornavam mais leves, mas a sensibilidade quase não se alterava. O olhar se fixava, a pupila tornava-se dilatada e perdia a capacidade de reagir à luz. Contudo, a psique continuava em atividade, de modo que o indivíduo percebia tudo. Entendia tudo, mas se encontrava “na impossibilidade absoluta de expressar aos outros” o que sentia. E era justamente por conta da preservação de tais atividades psíquicas que “essa primeira forma de letargia” era chamada de letargia lúcida.
Lapponi (1907: 101) forneceu uma descrição minuciosa do primeiro estágio da letargia, no qual a clareza da hipnose era preservada. Nesse estado, era possível realizar a sugestão, mas ele considerava que, entre as três condições hipnóticas, o sonambulismo era a mais propícia para todo tipo de sugestão. Para Lapponi, a sugestão era a "insinuação de uma ideia, a inspiração de um desejo, de um projeto, de uma determinação, de um ato" e consistia em impor imagens a um sujeito hipnotizado que, em certo momento, a imaginação desse sujeito deveria aceitar de forma dócil e com extrema intensidade, permitindo assim que ele experimentasse seus efeitos involuntariamente. Bernard Hollander (1910) tinha uma perspectiva diferente. Ele acreditava que a sugestão acontecia no âmbito das relações sociais; por outro lado, Lapponi acreditava que era preciso conduzir o indivíduo ao estado de hipnose, argumento que fragiliza a primeira premissa da comissão.
Outro aspecto significativo a enfatizar na análise de Lapponi é a abordagem pela qual a sugestão é efetuada: unicamente por meio de um estímulo sensorial, seja um gesto, uma palavra ou uma sensação física. Isso questiona se a imposição das mãos poderia ser um mecanismo eficaz para realizar a sugestão. À primeira vista, parece ser o caso. No entanto, o autor apresenta uma afirmação que, de certa forma, confunde o leitor: “Nenhum fato científico bem estabelecido chegou a justificar, até agora, a hipótese de uma sugestão puramente mental, da qual falamos frequentemente, e que permitiria ao hipnotizador impor uma ideia sobre a curiosidade do sujeito”, o que fragiliza a segunda premissa da comissão (Lapponi, 1907: 97; 99; 101).
Por outro lado, “os fenômenos de hipnose não resultam de nenhum fluido, psíquico ou magnético, mas unicamente da maneira especial pela qual um sujeito reage aos estímulos, psíquicos ou físicos, interiores ou exteriores” (Lapponi, 1907: 60-61). A partir dessas declarações, pode-se concluir que a sugestão requer que palavras sejam enunciadas para que ocorra. No entanto, Eduardo Silva, com poucas exceções, permanecia em silêncio durante o processo de imposição das mãos. De fato, houve uma ambiguidade na definição de hipnotismo e sugestão, e a narrativa, que inicialmente parecia caminhar para distinguir um do outro, acabou descrevendo-os como fenômenos muito semelhantes.
Mais um ponto importante destacado por Lapponi (1907: 102) diz respeito aos resultados obtidos durante a sugestão. Segundo ele, “a sugestão pode ter por objeto também as funções orgânicas e sensoriais, os desejos, as tendências, as operações imaginárias, como também com as operações da inteligência e os atos da vontade”. Era preciso determinar se a sugestão exercia alguma influência sobre as funções orgânicas daqueles que a ela se submetiam, mas o médico italiano não afirmou em momento algum que o "procedimento" poderia ser eficaz na cura de qualquer doença. Os resultados mais notáveis no organismo, conforme apresentados pelo autor, ocorriam durante estados profundos de hipnose, ou seja, durante o sonambulismo, e tinham pouca relação com a cura de enfermidades. De acordo com o autor, “pode-se sugerir a um indivíduo, no estado de sonambulismo induzido, a ordem de vomitar ou sangrar pelo nariz, durante o estado hipnótico ou depois de acordar”. Completou: “veremos o sujeito, no momento e durante o tempo prescrito, vomitar, sangrar pelo nariz, permanecer cego com um olho ou não conseguir falar”.
O médico italiano argumentou ainda que a “hipnose pode ser útil, do ponto de vista individual: esses casos são aqueles onde aplicamos a hipnose, com uma prudência extrema, no tratamento de certas paralisias ou contraturas histéricas”, ou ainda outras manifestações de neurose (Lapponi, 1907: 102; 268). De fato, aparecem apenas narrativas de manipulação de funções orgânicas e a única referência a uma doença diagnosticada é a paralisia, ainda assim, em alguns casos. A partir das escritas de Joseph Lapponi, fica claro que a sugestão não poderia ser empregada para a cura de uma ampla variedade de enfermidades, como indicado no relatório da comissão médica. Nem a sugestão, nem o hipnotismo, conforme descrito por Lapponi, pareciam ser eficazes, principalmente no tratamento de doenças nervosas.
O que havia em comum entre os escritos de Lapponi (1907) e Hollander (1910) era a crença de que apenas os médicos diplomados estariam habilitados para realizar aqueles a hipnose e a sugestão. Segundo Lapponi, o hipnotismo precisava de algum modo ser equiparado às grandes operações cirúrgicas, amputações, etc. Da mesma forma que tais procedimentos seriam imorais quando realizados por mera diversão, o hipnotismo deveria ser sempre reprimido quando praticado por espetáculos e divertimento. Tais cirurgias deveriam ser praticadas por pessoas capacitadas e em espaços específicos, caso contrário deveriam ser proibidas.
Para Hollander, por outro lado, para realizar a sugestão com sucesso, os médicos precisavam “ter o discernimento da condição psíquica da pessoa a ser influenciada”, verificando “suas qualidades individuais, constituição, temperamento, disposição e seu humor naquele momento”. Segundo o autor, era necessário que aquele procedimento fosse realizado por um “especialista em caráter humano” conhecedor da “natureza humana e da psicologia prática, além de ser dotado de tato e simpatia incomuns”. O tratamento pela sugestão demandava conhecimento profundo do funcionamento normal do cérebro e de seus distúrbios no sistema nervoso, elementos que apenas os médicos possuíam (Hollander, 1910: 223).
Era fundamental, portanto, possuir um conjunto de conhecimentos teóricos e práticos abrangentes, abarcando tanto o sistema nervoso quanto a medicina geral, para adentrar no campo da hipnose. Ou seja, ambos os autores buscavam resguardar os privilégios da classe médica, aspecto em comum com a maioria dos médicos brasileiros, os da comissão inclusive. Eduardo Silva, entretanto, não possuía formação médica, mas sim uma formação em engenharia. Em suas declarações, ele afirmou que não tinha conhecimento das origens de várias doenças e afirmou que não fazia diagnósticos em seus pacientes. Esses argumentos serviram para eximir o curador da acusação de praticar ilegalmente a medicina, conforme previsto no Código Penal. É provável que ele tenha sido orientado por sua rede de relacionamento, composta por médicos, advogados, políticos, etc., como proceder a partir do momento em que os órgãos de higiene e a imprensa começaram a atacá-lo com mais vigor. Hollander limitava o uso da hipnose e da sugestão a um público restrito, composto por profissionais médicos, já que eles possuíam habilidades e conhecimentos teóricos especializados para aplicar essa técnica.
Embora tenha tido um relacionamento variável com o hipnotismo, Sigmund Schlomo Freud (1856-1939) investigou os fenômenos da sugestão e da hipnose no período de 1886 a 1896, deixando uma contribuição significativa sobre o tema. Essa pesquisa oferece elementos valiosos que auxiliam na reflexão sobre os argumentos apresentados pelos médicos da comissão.[33] Freud publicou estudos sobre o tema, frequentou encontros e eventos, traduziu obras, utilizou o método da hipnose, mas também se frustrou, pois logo a hipnose passou a desagradá-lo, já que, apesar de seus esforços, ele não produziu o estado hipnótico e não obteve resultados satisfatórios, decidindo abandonar a prática. A partir daí ele passou a utilizar a hipnose de maneiras diversas através do “método catártico” e da “sugestão direta”, idealizando um sistema no qual reproduzisse os efeitos da sugestão, sem a necessidade de colocar o paciente em estado de hipnose, o que resultaria anos mais tarde na psicanálise. Segundo Freud, os psicanalistas poderiam afirmar que eram os legítimos herdeiros da hipnose e por isso deveriam agradecer “à velha técnica da hipnose por nos ter mostrado os processos psíquicos simples da análise, numa forma isolada ou esquemática” (Freud, 1996: 101-102; 105).[34]
Sigmund Freud deixou três contribuições de destaque para nossa compreensão do caso do curador Eduardo Silva e de outros curadores. Com base nos estudos de Bernheim, ele sustentava que havia evidências convincentes de que o uso da sugestão conjugada com a hipnose proporcionava aos médicos um método terapêutico extremamente eficaz, que parecia ser especialmente apropriado para tratar certos distúrbios nervosos. Ele acreditava que tanto a hipnose como a sugestão poderia ser aplicada não só em pessoas histéricas ou neuropatas graves, “mas também à maior parte das pessoas sadias”, buscando ampliar o “interesse dos médicos por esse método terapêutico” (Freud, 1996: 105).
O médico e senador Almeida Nogueira tinha, portanto, alguma razão em suas elucidações sobre a prática curativa de Eduardo Silva. Os médicos da comissão instituída pelo delegado Sá Viana também estavam cientes disso, mas o que estava em jogo era o prestígio e os projetos do grupo médico que buscava a todo custo evitar os tropeços em sua missão civilizadora (Mota, 2005). Eduardo Silva precisava ser parado. Mas naquele momento específico, o curador, com seus privilégios, contornou as leis. Saiu ileso e continuou “realizando maravilhas” com suas mãos.
Considerações finais
Eduardo Silva atuou num contexto bastante emblemático para a classe médica no país. Homem branco, letrado e de posses, ele confundiu os sinais para os esculápios paulistas ao articular uma robusta rede de relacionamentos e fazer frente ao grupo que buscavam seu quinhão nos caminhos da República. Esse era o projeto idealizado, mas a distância entre o discurso e a realidade apresentava uma série de desafios à classe médica, de modo que a medicina bandeirante enfrentou uma série de revezes e tropeços para alcançar seus objetivos. Ademais, o grupo possuía suas divergências, mas ao saírem do estado, apresentavam uma imagem de harmonia e homogeneidade (Mota, 2005: 29).
Articulando sua atuação no alvorecer da medicina liberal, centrada no consultório, na atividade individualizada e na liberdade do exercício profissional do próprio médico, Eduardo Silva ouriçou uma categoria que objetivava o monopólio de sua prática (Schraiber, 1993: 42). Apesar de o engenheiro crer que a imposição das mãos o afastaria da categoria médica, enfrentou revezes. Teve de lidar com a força dos esculápios paulistas que buscavam seu lugar no estado e na condução dos caminhos do país enquanto grande nação. Mas o engenheiro e curador saíra, pelo menos naquele momento, vitorioso dos embates. O caminho era tortuoso e impunha alguns tropeços aos esculápios. Digamos que o primeiro deles tenha sido a atuação do delegado Sá Viana que ao conduzir o inquérito não se sentiu seguro para dar os devidos encaminhamentos para a análise da promotoria. Ao contrário, instituiu uma comissão para analisar o caso de Eduardo Silva, uma vez que teve pessoa da família curada por ele.
A comissão médica estabeleceu que o procedimento curativo de Eduardo Silva se dava através da sugestão, mas não houve tempo hábil para que o inquérito seguisse os devidos trâmites. O inquérito prescreveu, livrando assim o curador das malhas da lei. Muito bem relacionado, branco e com posses, Eduardo Silva se safou das intempéries jurídicas, mas acabou gerando um amplo debate acerca da imposição das mãos e consequentemente da sugestão enquanto técnica curativa restrita à classe médica. Através da fala do médico e senador Almeida Nogueira, foi possível compreender a relação que mesmerismo, hipnose e sugestão estabeleciam entre si e como médicos europeus da época lidavam com a questão. As ideias de Mesmer foram fundamentais para desenvolver a hipnose e a sugestão e não faltaram pensadores para discutir a questão. Essas contribuições frutificaram a ponto de fortalecerem, segundo a medicina da época, o tratamento de algumas enfermidades orgânicas e outras emocionais, as quais serviram de elemento para que Sigmund Freud desenvolvesse seus métodos terapêuticos.
O caso de Eduardo Silva contribui fundamentalmente para compreender as discussões sobre a sugestão e o tratamento de enfermidades psicológicas, campo que dava seus primeiros passos. Os médicos se lançaram com vigor ao estudo da questão, muito embora tivessem enquadrado o curador enquanto sugestionador – sem elementos concretos para tal – para proteger a classe médica, uma vez que ele não possuía o diploma para exercer a medicina. O engenheiro inglês teve grande sucesso com as curas maravilhosas de suas mãos, porque estava inserido num ambiente historicamente impregnado pela crença em poderes sobrenaturais de cura, o que fez o poder de suas mãos atravessar o país atraindo curiosos, necessitados e o interesse da classe médica. As disputas entre médicos e charlatões contribuíram para consolidar um arcabouço técnico científico na Primeira República e o desenvolvimento e consolidação de terapias questionadas por muitos doutores.
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Notas