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Notas para um diálogo interrompido: registros da interlocução de Juan Carlos Garavaglia e os historiadores brasileiros

Notas sobre un coloquio interrumpido: crónicas del diálogo de Juan Carlos Garavaglia con los historiadores brasileños

Notes about an interrupted colloquium: comments on the interlocution of Juan Carlos Garavaglia and the Brazilian historians

Wilma Peres Costa
Universidade Federal de São Paulo, Brasil

Notas para um diálogo interrompido: registros da interlocução de Juan Carlos Garavaglia e os historiadores brasileiros

Prohistoria, núm. 28, 2017

Prohistoria Ediciones

Recepção: 19 Junho 2017

Aprovação: 24 Setembro 2017

Resumo: Esse texto, em forma de relato pessoal e acadêmico procura homenagear a vida e o trabalho de Juan Carlos Garavaglia (1944-2017) ressaltando algumas de suas relações com o meio acadêmico brasileiro desenvolvidas entre 2001 e 2017, período em que desfrutamos uma interlocução intelectual intensa e uma fraterna amizade.

Palavras-chave: Fiscalidade , independência , burocracia , Brasil , América, América, Espanhola.

Resumen: El presente texto, en forma de relato personal y académico, procura homenajear la vida y el trabajo de Juan Carlos Garavaglia (1944-2017), resaltando algunas de sus relaciones con el medio académico brasileño desarrolladas entre los años 2001 y 2016, período en el cual disfrutamos de un diálogo intelectual intenso y, asimismo, de una amistad fraterna.

Palabras clave: Fiscalidad , independencia, burocracia , Brasil , América española.

Abstract: This text, in the form of a personal and academic account, seeks to pay homage to the life and work of Juan Carlos Garavaglia (1944-2017), highlighting some of his relations with the Brazilian academic environment, developed between 2001 and 2016, a period in which we enjoy an intellectual interlocution intense and fraternal friendship

Keywords: Taxation , independence , bureaucracy , Brazil , America Spanish.

Juan Carlos Garavaglia nos deixou nesse triste janeiro de 2017. No hemisfério sul se aproxima já a primavera, mas parece que os que tínhamos por Juan Carlos grande afeto (e somos tantos) tardamos em nos convencer de sua ausência. Em minha experiência particular, o sentimento de algo que se interrompe precocemente quando tanto ainda havia a ser feito e desfrutado acentua-se por que estávamos envolvidos nesse belo projeto coletivo, o do livro A 150 años de la Guerra de la Triple Alianza contra el Paraguay,[1] fruto do Seminário que me fez conhecer Santa Fé, em 2016, onde passamos dias intensos e mágicos, Juan Carlos, Alejandro Rabinovich, Jorge Gelman, Mario Etchechury, Raul Fradkin, e eu. Foi lá que descobri, entre muitas coisas, que esse Rio Paraná, legado comum de argentinos e brasileiros, pode ser tratado com poesia. Os argentinos, diferentemente dos brasileiros, não matam seus rios. Se esse sentimento de ruptura torna mais difícil a realização dessa homenagem, é por que, como bem demarcou Elisa Caselli, quando nos honrou com o convite para fazer parte dessa publicação, nenhum de nós a queria póstuma. No mesmo convite, Elisa ponderava também, com sabedoria e sensibilidade, que, ainda que dolorosa, essa tarefa poderia ter um sentido reparador, por que transformará este homenaje en una labor. Ocorreu-me que isso se parecia muito com Juan Carlos. Depurar a saudade com o trabalho, o que poderia ser mais apropriado para celebrar a amizade desse trabalhador incansável, apaixonado pela materialidade da vida humana e dos papéis carcomidos pelo tempo, o gout des archives que ele soube tão bem saborear?

Espero sinceramente que os leitores acadêmicos sejam indulgentes com o tom desse relato, sempre tão difícil de encontrar, e que decidi deixar soar livremente entre o acadêmico e o afetivo. Procuro através de notas despretensiosas, e sem me jungir excessivamente ao rigor próprio dos textos de ofício, registrar alguns momentos da relação de Juan Carlos com os historiadores brasileiros, particularmente através dos dois projetos de que fizemos parte, ele e eu, projetos que correram por um período em paralelo e nos quais nos coube fazer o papel de pontos de ligação –A fundação do estado e da nação Brasileira c.1780-1850 (coordenado por István Jancsó, Cecília Helena de Salles Oliveira e eu, na Universidade de São Paulo, entre 2004 e 2009, com auxílio financeiro da FAPESP) e State Building in Latin America, 1810-1875, coordenado por Juan Carlos Garavaglia, na Universidade Pompeu Fabra, Barcelona, entre 2009 e 2014, financiado pelo ERC.

Juan Carlos Garavaglia foi um dos mais brilhantes historiadores da sua geração, essa que viveu a sua juventude nos anos sessenta em nossa América Latina, calejada nas lutas sociais e no enfrentamento das ditaduras. Ele soube depurar como poucos essa agenda dolorosa, esculpindo seus temas com o auxílio do mais sofisticado ferramental acadêmico e exercendo o ofício com maestria e com o mais absoluto rigor. Soube também como cabe a alguém que viveu a juventude nos anos sessenta, exercer o rigor sem perder a ternura. A inteligência vívida, a erudição abissal e o humor sempre pronto e sagaz foram as ferramentas que o ajudaram a sobreviver às múltiplas dimensões de um exílio que não foi apenas político. Este, felizmente, se encerrou em um dado momento do tempo. O exílio mais fundo, o das sensibilidades latino-americanas, a expansividade do riso, o toque, o abraço, ele sempre o viveu com um certo incômodo, premido pelas rígidas convenções francesas.Não por acaso, dentre seus muitos orientandos latino-americanos, veio de uma brasileira, a historiadora Sylvia Capanema, que é também Deputada em Seine Saint-Denis pelo PCF, um dos mais comoventes testemunhos desse desconforto, que é também um sugestivo documento de Juan Carlos como formador de pesquisadores, no seu trato humano e generoso.

Il a été mon directeur de thèse, três généreux, avec une lecture toujours perspicace et toujours présent pour me soutenir. Je pense maintenant combien jê lui dois, à CET historien argentin remarquable. Quand je cherchais à poursuivre mes études en DEA (à l'époque), il m'a acceptée, alors que je n'étais pas historienne et j'avais même des lacunes. (...) Il m'a ouvert les portes de la prestigieuse EHESS, à Paris. Il m'a tout de suite dit: "on se tutoie, Silvia, il n'y a pas de raison pour qu'un Argentin et une Brésilienne utilisent le vous." Puis il m'a aidé à trouver des financements pour mes terrains de recherche, il a encouragé les colloques des doctorants que l'on faisait, les publications pour étoffer le CV et faire circuler la recherche, les premiers postes universitaires. Un jour, il m'a dit, avec son fort et agréable accent : "Silvia, il n'y a qu'une seule histoire, l'histoire sociale." Et aujourd'hui je me rends compte de comment cette phrase a compté pour que je devienne non seulement l'historienne, mais aussi la militante que je suis.

Eu o conheci em 2001, durante meu estágio de Pós doutorado na EHESS, em um seminário em torno do meu livro A Espada de Dâmocles - o Exército, a Guerra do Paraguai e a crise do Império (1996), que tratava dos efeitos das guerras platinas e, em particular da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, sobre o processo de construção e crise do Estado Imperial brasileiro no século XIX. Juan Carlos foi convidado ao Centre de Recherche sur Le Brésil Contemporain (CRBC) na qualidade de comentador e me presenteou com a leitura mais minuciosa, mais completa e também mais generosa que esse livro jamais teve. Anos depois ele a registrou em uma resenha nos Annalles, (vol. 61, n.2, 2006) o que foi para mim uma grande honra. Raúl Fradkin feriu uma nota sensível ao mencionar no Post Scriptum da nossa última coletânea, essa resenha como um ponto de referência na trajetória de Juan Carlos no sentido da retomada de seu interesse pelo Paraguai, tema que ele havia estudado nos anos de sua formação. Sem que ninguém pudesse imaginar, o Paraguai esteve no início e no fim de suas paixões intelectuais, retomado desta feita através de renovadas indagações sobre essa guerra infame.

No constante diálogo intelectual que passamos a travar a partir de então, renovado a cada ano na EHESS e nos congressos latino-americanos de História Econômica, a convergência de nossos interesses e leituras comuns, que principiou pelo estudo da guerra, espraiava-se para as várias dimensões da construção do estado na América Latina, inspirados sobretudo nas leituras da Sociologia Histórica (Marx e Engels, de um lado, Weber e Schumpeter, de outro; com Charles Tilly e Pierre Bourdieu fornecendo novas e instigantes agendas de investigação. Se eu pudesse apontar de modo sucinto o eixo central dessas inquietações, e sua relação com a temática da guerra, eu diria que elas gravitavam na busca de entender de que modo se processaram as sinergias extração/coerção e taxação/representação nas experiências históricas latino-americanas. A fiscalidade adquiria, desse modo, uma grande potencialidade como ferramenta heurística, abrindo caminho para inquirir sobre o alcance e os limites da monopolização da violência e também sobre os modos como o conflito distributivo se processou, ao longo do século XIX, gravitando mais em torno dos conflitos entre os entes federados e o centro político do que em torno do controle do autoritarismo e dos direitos de cidadania.

Entre 2002 e 2004, em duas fecundas viagens de pesquisa a Paris, eu me preparava para iniciar uma grande aventura intelectual, o Projeto de Pesquisa A Fundação do Estado e da Nação Brasileira c. 1780-c.1850, coordenado pelo historiador István Jancsó, riquíssima figura de intelectual dos dois mundos (húngaro, brasileiro, discípulo de Pierre Villar) que veio a falecer precocemente em 2009. Esse projeto envolvia cerca de 23 pesquisadores, e um grande número de jovens graduandos em formação e se dividia em duas esferas de análise, grosso modo nomeadas como Nação e Identidades Políticas Coletivas e Estado e Soberania. Nessa segunda esfera eu me encontrava como sub-coordenadora.

Dentro da configuração do projeto, a idéia de um Subprojeto focalizando as dimensões específicas da construção do centro político e dos modos de governar atendia a uma estratégia de investigação que propiciasse repensar a opção monárquica e imperial do Estado brasileiro no século XIX em sua plena historicidade, vale dizer, inserida na grande crise sistêmica do Antigo Regime e travejada pelos conflitos que afetavam as distintas partes do território que fora até então o da América Portuguesa, diversidade que impulsionava a formação de identidades coletivas não necessariamente convergentes com a unidade política sob um centro único, localizado no Rio de Janeiro. Estas identidades, consubstanciadas na volatilidade dos sentidos da nação no interior do processo de crise do Antigo Regime Português na América e de sua superação, eram objeto privilegiado do outro Subprojeto, (Nação e Identidades), que formava com o primeiro um campo de diálogo permanente e indispensável.

Deste modo, procurávamos conceber a formação do Brasil como um mosaico, metáfora fecunda que servia como aos pesquisadores do grupo, assim como a de artefato, buscando escapar de qualquer teleologia sobre a nação brasileira a partir de seu passado colonial. A metáfora do mosaico suscitava outra, a do estado como sendo a sua moldura – conjunto multifacetado de instituições, práticas e representações, cuja criação ocupou a geração da Independência e aquela que a sucedeu. Que uma parcela de um Império (o Império Português) desse lugar a uma unidade política nova que, embora adotando a forma monárquica e o título de Império, incorporava, também, a forma liberal e o horizonte constitucional, parecia a esses pesquisadores uma problemática que estava a pedir um tratamento mais detalhado, enfrentando algumas armadilhas legadas pelo anacronismo inerente ao paradigma da “história nacional”.

Nesse esforço coletivo eu me inseria com um estudo sobre a fiscalidade brasileira, na transição da Colônia para a vida independente, buscando dar sequencia a caminhos de pesquisa iniciados no doutorado, fortemente marcada pelos paradigmas da sociologia histórica, em especial pelas leituras de Schumpeter e de Charles Tilly. Estes sugeriam um travejamento social e político para a história da fiscalidade, a partir do qual se poderia pensar tanto a dimensão propriamente extrativa, articulada aos processos de monopolização da violência (o famoso ciclo extração/coerção), como a reverberação do conflito fiscal na esfera propriamente política (sinergia taxação/representação). Essas perspectivas de investigação buscavam resgatar também o espaço para a história econômica, no interior do debate historiográfico brasileiro, onde essa área de pesquisa vinha sendo fortemente relegada a segundo plano, na avassaladora onda das “identidades” e da história cultural.

É impossível mensurar o valor da interlocução intelectual com Juan Carlos Garavaglia para mim e para os meus orientandos, nesse momento fecundo em que ele elaborava, com entusiasmo febril, as bases do que viria a ser o seu projeto State building, em que a fiscalidade (e as inspirações de Schumpeter) teve um papel primordial. Mais do que isso, suas sugestões ofereciam também uma perspectiva que permitia também colocar sob nova luz a questão do monopólio da violência e os seus limites na experiência histórica hispano-americana e brasileira, com o reiterado recurso às formações milicianas, onde repontam também as especificidades do escravismo, marca estruturante da experiência de construção estatal no Brasil.

Um tema de fronteira

A fiscalidade aparecia nessas discussões como a melhor expressão das virtualidades fecundas dos territórios de fronteira. Situada na confluência de múltiplas interfaces –em particular aquelas que aproximam a sociologia política da história econômica– seu estudo possibilitava encarar a construção do Estado como problema historiográfico, recortado em sua singularidade, ao mesmo tempo em que permitia interrogá-lo a partir das sinergias que ele estabelece com as forças sociais mais profundas da sociedade e da cultura, vale dizer, reencontrar no coração da história política, a história social. A capacidade de extrair recursos materiais da sociedade para sustentar a existência de um centro político e a extensão de sua capilaridade, os modos concretos pelos quais essa capacidade se produziu e se legitimou, proporciona um ângulo de visão estratégico para compreender as imbricações entre a ordem privada e a esfera pública e seus laços duradouros; os impulsos transformadores da ordem política e as suas resistências mais profundas. Ela é um dos campos principais da construção das desigualdades como da expressão das demandas por equidade. Por essa razão, dentre os cientistas sociais contemporâneos, iluminava-nos a leitura de Schumpeter, quem estabeleceu o estudo da fiscalidade como objeto a ser incorporado pelos cientistas sociais e explorou, em um artigo seminal,[2] o campo da fiscalidade como interface fecunda entre a história, a economia e a sociologia. A enorme influência desse pequeno artigo e as sendas por ele abertas ecoam nas várias correntes de estudiosos que, contemporaneamente, retomam a discussão do Estado pela senda da História, vale dizer que procuram pensar o Estado como resultante de um processo de construção[3].

A história fiscal de um povo é (...) uma parte essencial de sua história geral. O sangramento econômico gerado pelas necessidades do Estado e o uso que dele se faz produz uma enorme influência enorme sobre o destino das nações. Em alguns períodos históricos, a imediata influência formativa das necessidades fiscais e da política fiscal do Estado no desenvolvimento da economia (e, a partir daí, em todas as formas da vida e todos os aspectos da cultura) explica praticamente todas as principais características dos eventos. Na maior parte dos períodos, ela explica a maior parte delas e há muito poucos períodos em que ela nada explica.[4]

E, mais adiante,

Mais importante do que tudo é a visão propiciada pelos eventos da história fiscal sobre as leis da sociedade e sua transformação e sobre as forças motoras do destino das nações, bem como sobre a maneira pela qual as condições concretas (e, em particular as formas organizacionais) crescem e se transformam. As finanças públicas são um dos melhores pontos de partida para a investigação da sociedade, especialmente (embora não exclusivamente) de sua vida política. A fecundidade (...) dessa abordagem é vista particularmente naqueles pontos de viragem, (...) ou épocas de mudança, durante os quais as formas existentes começam a morrer e a mudar para alguma coisa nova, o que sempre envolve uma crise dos antigos métodos fiscais.[5]

A fiscalidade, olhada desse modo aparecia a Schumpeter, como dimensão essencial da história dos povos, distinguindo o olhar do historiador econômico daquele do economista e do especialista quantitativo das finanças públicas[6]. Se para este, o foco principal se localiza nos resultados, isto é, nos montantes arrecadados e sua evolução ao longo de um dado período, o historiador econômico que opera na fronteira com a sociologia histórica, orienta-se pelos processos de arrecadação, para as tensões entre os impulsos extrativos do estado e as múltiplas resistências dos agentes sociais e para os complexos processos através dos quais a arrecadação se constrói e se legitima, sem esquecer o modo como, em torno dela, se desenvolvem os conflitos entre as diferentes esferas do poder (cidades, províncias, regiões) e entre as distintas camadas da sociedade. A fiscalidade é, assim, condição do poder do estado e de sua propagação no interior da sociedade. Ela é também alavanca da transformação das instituições políticas, força propulsora dos controles sociais sobre o poder do Estado. Nesse plano, a fiscalidade é dimensão estratégica para o entendimento de como se estabeleceram, em situações históricas determinadas, as distinções entre a ordem pública e a esfera privada e as suas relações.

Por essa razão, é freqüente que possamos aprender com os estudos fiscais, mesmo quando as séries são imperfeitas e os dados lacunares, pois os processos fiscais são também elucidativos, quando olhados “pelo avesso”. As resistências ao fisco, as oposições aos sistemas de medição e contagem permitem penetrar em uma zona de sombra freqüentemente desprezada pelos estudos quantitativos, onde os silêncios podem ser bastante eloqüentes. Da mesma forma, os modos de arrecadar e a sua lenta transformação são outras dimensões constitutivas da compreensão dos processos fiscais. Contratos privados ou administração pública; pulsões diretas, sobre a renda ou a fortuna privada ou transferência dos encargos para a esfera da circulação; concentração no centro político ou delegação federativa? Cada uma dessas perguntas indicava que os estudos fiscais poderiam ser conduzidos para muito além do que podem sugerir os relatórios oficiais e as séries orçamentárias.

Os enigmas propostos pela fiscalidade se multiplicam e ganham especial interesse naquelas formações políticas emergiram em funda interação com instituições legadas pelo passado colonial, estruturas que eram, elas mesmas, importantes instrumentos do fazer político que entretecia as relações entre colonizadores, funcionários régios e colonos e que iriam sobreviver, transformadas, ao longo das transformações inerentes a constituição de uma ordem política representativa após a Independência.

Os parágrafos anteriores, extraídos do que era então o meu primeiro relatório de pesquisa, lido e anotado por Juan Carlos, trazem um pouco a marca daquelas discussões e a interface que então se estabelecia entre o projeto de pesquisa que desenvolvíamos no Brasil e o que em breve ele iria estabelecer na Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, seguido de um grande número de jovens pesquisadores. No início de 2003 recebemos o que acredito ser a primeira versão de seu artigo.

Uma parte significativa do que está registrado nos parágrafos anteriores, está presente na primeira versão do seu artigo El despiegle del estado en Buenos Aires: de Rosas a Mitre (a minha versão traz a data de 06/03/2003) que recebemos ainda em estado de rascunhos e discutimos intensamente nos seminários de pesquisa do grupo do Projeto A Formação do Estado... ao mesmo tempo em que sonhávamos trazer Juan Carlos Garavaglia a São Paulo, que ele não conhecia, assim que o projeto fosse aprovado, assim que tivéssemos recursos... Os jovens pesquisadores estavam sendo, naquele momento, fortemente impactos com as leituras de Xavier Guerra e José Carlos Chiaramonte, que haviam estado em grande Seminário Internacional realizado na universidade de São Paulo, em 2001. As discussões trazidas pelo texto de Garavagalia propunham novas perspectivas para aquelas leituras precisamente por que nele as dimensões da vida material ganhavam uma centralidade maior, permitindo olhar de modo mais denso a questão das identidades políticas coletivas e das complexas possibilidades oferecidas pela história fiscal para entender tanto a relação entre o centro e as partes como aquelas que marcavam as hierarquias sociais verticais e as configurações pelas quais as elites políticas desenhavam seu lugar no corpo do estado. Vamos reencontrar essas questões, desta feita em grande abrangência, no esforço de constituir uma agenda de pesquisa em dimensão continental, em Algunos aspectos preliminares acerca de la “transición fiscal” em América Latina: 1800-1850 (Illes i Imperis, 13, Barcelona, 2010), ancorado tanto na idéia da importância fundamental da fiscalidade para a compreensão da sociedade colonial, quanto na valorização da sentido sistêmico daquela fiscalidade, que se rompe com a ruptura da legitimidade nos primeiros anos do século XIX. Corre paralela a essa, a idéia de uma alongada transição fiscal vivida em toda a América Latina, em que as aduanas ganham crescentemente o centro do financiamento dos novos estados, equalizando portanto a inserção mercantil exportadora ao próprio destino da construção estatal, inclusive nas suas estratégias de financiamento da guerra.

Quando finalmente, em 2009, foi organizado o primeiro encontro internacional do Projeto State Building in Latin América, coordenado por Garavaglia na Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, nossa conversa pode prosseguir, com o convite para integrar com Marcia Eckert Miranda uma das mesas daquele evento. Encontramos então nesse seleto grupo de estudiosos que se interessavam por essa maneira fecunda de pensar a fiscalidade e a construção das burocracias estatais latino americanas, inclusive as diferentes formas de forças armadas, um campo generoso e estimulante de interlocução. Trabalhávamos então uma temática que era a um tempo similar e distinta das experiências hispano-americanas –a dos gaúchos brasileiros e seus conflitos com o Império, entretecidas sempre com as questões das formações milicianas - Entre os senhores e o Império: transformações fiscais na formação do Estado Brasileiro – 1808-1840 (Illes i Imperis, 13, 2010, p. 87-115). Em 2011, quando se iniciava a segunda etapa do projeto, em Barcelona, novamente os interlocutores brasileiros lá estiveram convidados, desta feita na discussão burocracia, com um trabalho sobre a justiça e as formações armadas também escrito a quatro mãos, desta feita com Andréa Slemian, The Justice System, the National Guard and Control of Public Order:the Brazilian Empire in the Initial Decades of the Nineteenth Century, posteriormente publicado na coletânea organizada por Juan Carlos Garavaglia e Juan Pro Ruiz, Latin American Bureaucracy and the State Building Process (1780-1860), Cambridge, 2013.

Uma visita tão adiada, um artigo iluminador

Enquanto isso, no Brasil, continuávamos a buscar uma oportunidade para vinda de Juan Carlos Garavaglia. No final de 2003 os recursos para o financiamento do projeto brasileiro foram finalmente aprovados e planejamos um grande Seminário Internacional em torno da discussão historiográfica da Independência, para o qual contávamos com a presença de Juan Carlos. Texto enviado, programa pronto e divulgado, nosso querido Juan Carlos foi forçado a cancelar sua vinda ao Brasil, ainda não seria dessa vez. Mas, felizmente pudemos contar com seu artigo Primórdios do Processo de Independência Hispano-Americano, publicado na coletânea coordenada por István Jancsó, Independência: história e Historiografia (São Paulo, 2005).

Nesse trabalho nos era oferecido uma análise percuciente do início do processo de Independência hispano americano, construído em torno de um grande eixo interpretativo fundado em Xavier-Guerra –a ruptura da legitimidade a partir dos acontecimentos de Bayone, impondo uma ruptura insanável entre o rei e seus súditos. Essa ruptura, nos quadros da cultura política do Antigo Regime, impunha uma outra premissa necessária– “sem um rei legítimo como cabeça da soberania , esta só pode residir, de agora em diante, no povo; assim não haveria mais súditos, mas cidadãos, embora a construção de tal figura do cidadão leve mais de um século (...)” (p. 208). Ao deslocar habilmente o centro do argumento daquele do regime político (monarquia ou república), para o da legitimidade, o artigo desdobra uma agenda instigante para o estudo da comparada entre a experiência histórica das duas partes da América Ibérica, permitindo abordar uma riquíssima pauta de questões, a partir de duas experiências históricas do mundo hispano-americano que eram caras a Juan Carlos, por razões acadêmicas e pessoais –a do Rio da Prata e de Nova Granada. Destaco alguns desses pontos a partir das estimulantes questões que permaneceram vívidas nas discussões do grupo de pesquisa e reverberaram em várias dissertações e teses. O primeiro deles estava ligado às discussões que eram então muito intensas entre nós, sobre as proximidades e diferenças entre a experiência constitucional de Cádiae aquela que se desenvolveu em Portugal a partir de 1820. O artigo de Juan Carlos, na esteira também oferecida por Guerra e Chiaramonte, enfatizam o papel preeminente das cidades na constituição dos espaços políticos da América Espanhola, como o lugar de reversão da soberania popular, tornando-as aglutinadoras do debate público. Em outra chave, e parcialmente por conta da referida quebra de legitimidade, lugar preeminente é dado na discussão para a dinâmica que se imprimiu no processo político hispano-americano pela disputa entre as cidades, configurando, em muitos casos, as dificuldades de consolidação de um centro político. Vale dizer, para além do enfrentamento com os poderes metropolitanos, a experiência da América Espanhola foi fortemente marcada por conflitos horizontais pela soberania, conflitos que freqüentemente transbordaram de forma perigosa e funesta (a palavra é dos documentos contemporâneos) para os setores populares, configurando possibilidades inquietantes de cidadanias armadas (ou de anomia social, conforme o olhar dos agentes sociais em luta poderia considerar. Na América Portuguesa essa trajetória parecia ser distinta, muito embora também estivesse ligada a uma experiência constitucional (a da Revolução do Porto), fortemente marcada pela experiência de Cádis. A experiência da eleição das juntas governativas em todas as capitanias da América, e de sua transformação em províncias tiveram reverberações que se prolongaram por toda a primeira metade do século XIX, gerando também conflitos com o centro político que se pretendia consolidar no Rio de Janeiro. O que se desenhava então como jurisdição política não foram, porém, as cidades, mas as capitanias/províncias, unidades já longamente consolidadas de identidades coletivas no período colonial. O conflito, porém, não deixaria de se estabelecer, transbordando também muitas vezes para os estratos populares e mesmo entre a massa escrava. Uma e outra experiência, em suas similitudes e diferenças ganhavam luz, entretanto a partir do paradigma da legitimidade. Não por que ela fosse rompida (na América Espanhola) e mantida (na América Portuguesa, por conta da presença de um rei legítimo), mas por que na América Portuguesa o processo se desenvolveu em torno de um conflito de legitimidades (a adesão às Cortes ou a adesão ao príncipe), que marcou a experiência política das províncias por várias décadas, obrigando os pesquisadores a matizar a idéia de um centro político precocemente consolidado no Rio de Janeiro, em razão a monarquia.

A legitimidade aparece então como uma chave fundamental, rompida de um lado (A. Espanhola), fraturada, de outro (A. Portuguesa), possibilidades distintas de encaminhamento para o que, de resto, era bastante similar, as identidades políticas parcelares, construídas no período colonial e que tinham por vértice o Rei e por condição unificadora, a de súditos.

Vejamos como a formulava o historiador István Jancsó, então coordenador do nosso projeto ao analisar o discurso dos deputados paulistas e bahianos ao justificar a sua ruptura com as Cortes de Lisboa, em 1822, quando abandonaram aquele experimento constitucional e refugiaram-se na Inglaterra, estabelecendo com clareza os desdobramentos da legitimidade fraturada entre Lisboa e o Rio de Janeiro. Observe-se em primeiro lugar que as exposições são diferentes em seus argumentos, mas tem um ponto em comum –o de atribuir aos eleitos por Portugal a responsabilidade pelo rompimento da unidade da nação portuguesa, o que poderia redundar na vitória daqueles que eles consideravam como facciosos, dentre os quais certamente não se incluíam.

Em meio à emocionada exposição do que era descrito como inevitável desastre político, os dois textos contêm várias idéias-chave dentre as quais ganham relevância as de pátria, país e nação. Na “Declaração” assinada por Cipriano Barata, pátria é o lugar de origem, o da comunidade que os elegeu para representá-la nas Cortes. É a ela que fariam, quando para aí regressassem, “exposição circunstanciada (...) dos diferentes acontecimentos [havidos] durante o tempo de sua missão”, e a ela caberia julgar o “merecimento de sua conduta”. Para eles, pátria não se confunde com país. Este é inequívocamente o Brasil ao qual os eleitos por Portugal querem impôr uma “Constituição onde se encontram tantos artigos humilhantes e injuriosos”. A nação, por seu turno, desloca-se para outra esfera, já que pátria e país não encontram equivalência na abrangência que lhe corresponda. Bahia e São Paulo são suas pátrias, o Brasil é o seu país, mas a nação à qual pertencem é a portuguesa. Essa mesma percepção perpassa o documento dos dois representantes de São Paulo, ainda que estes não recorram ao termo pátria, servindo-se, quando se referem ao corpo político formado por seus representados, como a sua Província, expressão ajustada ao novo contexto vivido pelo Império em fase acelerada de dissolução e, portanto, dotada de maior atualidade política.[7]

Vejamos agora como formulava Garavaglia a questão para a América Espanhola, a partir do eixo da legitimidade rompida.

Vimos de que modo os dois aspectos da ruptura de 1810 são capitais para compreender o fenômeno que ocorre nos momentos iniciais do processo de independência hispano-americana (e para separá-lo nitidamente do seu contemporâneo brasileiro). Por um lado, uma ruptura horizontal da legitimidade entre cidades – na verdade entre suas elites urbanas – que disputam entre si para assentar predomínio; por outro, uma ruptura vertical entre grupos sociais no interior desses núcleos urbanos que lutam pela preeminência numa busca desesperada para controlar o processo que se desenrola. Fratura que se estende muito além dos limites da cidade, para encontrar no meio agrário sua marca mais sólida. Aqui a crise de legitimidade converte-se velozmente em crise de autoridade. Lembremos as palavras de Bourdieu, ao criticar a concepção weberiana de legitimidade: “na verdade, o problema é que essencialmente a ordem estabelecida não coloca problemas, ou seja, para além das situações de crise, não está em jogo a questão da legitimidade do estado e da origem que este institui” e, na verdade, estamos diante da “submissão dóxica diante da ordem estabelecida”, quando esta submissão dóxica se quebra, a crise de autoridade é inevitável.

Esta crise de autoridade que abarcará toda a sociedade é o legado mais duradouro da independência em toda a América Espanhola. Para as elites recompor uma nova trama de poder levaria várias décadas. Por que, além do mais, deveria ser realizada ao mesmo tempo que se “inventavam” as nações. Inventar a nação e reconstruir o Estado! Tamanha tarefa não poderia ser brincadeira de criança e levaria muito mais tempo que o otimismo dos dirigentes da primeira geração revolucionária havia ingenuamente previsto. Partindo do duplo patriotismo de que faziam praça orgulhosos os membros das elites da América Espanhola até fins do século XVIII (sentiam-se ao mesmo tempo, mexicanos e espanhóis americanos; cartageneiros e espanhóis americanos) e que, mutatis mudandis se assemelharia aos catalães durante grande aprte do século XIX – nesses momentos em que afirmavam: “a Espanha é a nação e a Catalunha é a pátria” foi preciso inventar as nações. Ou seja, foi indispensável fazê-lo a partir do desenvolvimento desse primeiro patriotismo, o patriotismo local (aquele que Brading chamou uma vez de “patriotismo criollo”) que, pouco a pouco, ser iria estendendo sobre um território da guerra de independência e das décadas subsequentes.[8]

Quando finalmente os pesquisadores brasileiros conseguiram trazer Juan Carlos Garavaglia ao Brasil, István Jancsó já não estava mais entre nós e não pudemos assistir a essa tão esperada discussão entre dois homens com trajetórias intelectuais e políticas muitos similares, marcados pelo exílio e pela profunda impregnação da Escola dos Annales, e sobretudo de Pierre Villar.

A oportunidade que se apresentou foi o Forum da Revista Almanack, periódico que foi criado a partir do Projeto, mas que passava a ter vida própria, ancorado agora na nova Universidade pública criada na periferia da Grande São Paulo, em 2007, na qual estavam [9]os integrantes do projeto, iniciando uma carreira cheia de esperanças. É com emoção que registro aqui que nosso querido Juan Carlos Garavaglia esteve em nosso campus, tomou café com bolo levado por nós em nossas instalações ainda precárias, tão distantes das imponentes instalações da EHESS e da Pompeu Fabra. Conversou com os jovens professores, discutiu conosco o primeiro desenho da nossa pós graduação, encantou os alunos com sua grande erudição e seu humor inigualável e nos deixou esse registro precioso que foi o artigo Servir al Estado, servir al poder: la burocracia em el processo de construcción estatal en América Latina, enriquecido com os comentários de José Murilo de Carvalho e de José Reynaldo Lopes.

Aqui se recolocava o eixo estruturante de toda a investigação –a fiscalidade como caminho fecundo para pensar as rupturas envolvidas na crise do Antigo Regime e nas primeiras décadas da engenharia tanto na dimensão do estado, como naquela, freqüentemente mais fugidia, da nação. É assim que ele nos lembra que esse território, o do fisco, essencial e estruturante da colonização, torna-se o lugar também de uma mudança de mentalidades sem falar de também de um espaço de cristalização de conflitos de identidade política. Mas ele também foi o território da reiteração de algo que era muito antigo e muito arraigado – as vastas redes clientelares que articulavam o poder privado à esfera pública. História econômica, história política convergem aí, para aquela história social que ele sempre viu como a forma suprema do nosso ofício.

Concluindo essas linhas que tem apenas por objetivo registrar essa passagem breve, mas tão iluminadora, de Juan Carlos Garavaglia entre os pesquisadores brasileiros, quero sublinhar que sua presença persiste, em nossos corações e em nosso labor, ensinando, acolhendo. Foi muito breve, mas foi intenso, verdadeiro. Ficará para sempre conosco.

Referências

GARAVAGLIA, Juan Carlos y FRADKIN, Raúl A 150 años de la Guerra de la Triple Alianza contra el Paraguay, Prometeo, Buenos Aires, 2016

SHUMPETER, Joseph “The crisis of the tax state”, in International Economic Papers, n. 4, MacMillan, New York, 1954

BLOCKMANS, Win and GENET, Jean-Philippe The Origins of the Modern State in Europe, 13rh-18th centuries, Oxford University Press, 1998

TILLY, Charles The formation of national states in Western Europe, Princeton, Princeton University Press, 1975

MOTA, Carlos Guilherme (org.) Viagem incompleta. A experiência brasileira (1500­-2000), Ed. Senac, São Paulo, 2000

JANCSÓ, István (org.) Independência: história e historiografia, S.P: Hucitec

Notas

[3] Uma excelente síntese do estado atual da discussão encontra-se no esforço coletivo consolidado em BLOCKMANS, Win and GENET, Jean-Philippe The Origins of the Modern State in Europe, 13rh-18th centuries, Oxford University Press, 1998. Ver especialmente os volumes The Rise of the Fiscal State in Europe (c.1200-1815) e Economic Systems and State Finance, ambos coordenados pelo historiador inglês Richard Bonney.
[4] SHUMPETER, Joseph “The crisis of the tax state”, cit., pp. 6-7.
[5] SHUMPETER, Joseph “The crisis of the tax state”, cit., p. 7.
[6] Os fundamentos dessa interface se encontram em Joseph Shumpeter, “The crisis of the tax state”, cit. Ver também os artigos de Gabriel Ardant e Rudolph Braun em TILLY, Charles The formation of national states in Western Europe, Princeton, Princeton University Press, 1975. Para uma atualização do debate ver Richard Bonney, cit.
[7] JANCSÓ, István e PIMENTA, João Paulo G. “Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira)”, in MOTA, Carlos Guilherme (org.) Viagem incompleta. A experiência brasileira (1500­-2000), Ed. Senac, São Paulo, 2000, p. 128.
[8] GARAVAGLIA, Juan Carlos Primordios do processo de independência hispano-americano, in JANCSÓ, István (org.) Independência: história e historiografia, S.P: Hucitec, pp. 207-234.
[9] Versão digital em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2236-46332012000100005&lng=en&nrm=iso [acessado em 20 de setembro de 2017]
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