Dossier
“Para o bem do Brasil”: a participação feminina conservadora na Campanha do Ouro em 1964
“For the good of Brazil”: conservative female participation in the Gold Campaign during 1964
Avances del Cesor
Universidad Nacional de Rosario, Argentina
ISSN: 1514-3899
ISSN-e: 2422-6580
Periodicidade: Semestral
vol. 20, núm. 29, 2023
Recepção: 08 Fevereiro 2023
Aprovação: 03 Agosto 2023
Publicado: 05 Dezembro 2023
Resumo: Em 1964, logo após o golpe civil-militar que destituiu o presidente João Goulart e instaurou no Brasil uma ditadura que duraria duas décadas, teve início, em São Paulo, a campanha Ouro para o bem do Brasil. Organizada pelos Diários Associados, então o maior conglomerado de mídia do país, a iniciativa pretendia arrecadar doações com o objetivo de contribuir para a “recuperação econômica do país”. Em pouco tempo, a campanha se espalhou pelo Brasil, mobilizando número impressionante de doadores. Os organizadores não tardaram a convidar para liderar a campanha alguns dos grupos femininos conservadores e anticomunistas que surgiram em diversas cidades do país na primeira metade da década de 1960 e tiveram papel ativo nas mobilizações que levaram ao golpe.
Palavras-chave: ditadura, Brasil, mulheres, direitas.
Abstract: In 1964, soon after the civil-military coup that overthrew President João Goulart and established a dictatorship in Brazil that would last for two decades, the campaign Gold for the good of Brazil began in São Paulo. Organized by Diários Associados, then the country's largest media conglomerate, the initiative aimed to collect donations to contribute to the country's "economic recovery". In a short time, the campaign spread throughout Brazil, mobilizing an impressive number of donors. The organizers soon invited to lead the campaign some of the anti-communist women's groups that emerged in several cities of the country in the first half of the 1960s and played an active role in the mobilizations that led to the coup.
Keywords: dictatorship, Brazil, women, right-wingers.
Introdução
No dia 17 de maio de 1964, pouco mais de um mês após o golpe de estado que havia derrubado o presidente João Goulart no Brasil, O Jornal, periódico carioca ligado ao conglomerado de mídia Diários Associados, publicava um convite dirigido pelo Movimento de Arregimentação Feminina (em diante, MAF) de São Paulo às associações femininas da Guanabara. Dizia a nota:
ÀS ASSOCIAÇÕES FEMININAS DA GUANABARA
O Movimento de Arregimentação Feminina –MAF– que congrega donas de casa e mães de família, no Estado de São Paulo, perfeitamente integrado nesta vitoriosa campanha “OURO PARA O BEM DO BRASIL” vem pedir a todas as mulheres da Guanabara e do Brasil todo, que dêem sua preciosa colaboração, com o entusiasmo de que são capazes, a este movimento cívico, para que o mundo possa ver o maravilhoso ressurgimento desta grande Nação, pelo esforço de um povo que confia em um Governo honesto.
Recebam todas a saudação entusiástica do MAF.
Deus Salve o Brasil.[1]
A presença das associações de “donas de casa e mães de família” na grande imprensa brasileira foi uma constante ao longo do ano de 1964, tendo se intensificado particularmente entre os meses de março e junho. Com efeito, tal presença vinha aumentando de forma gradual nos últimos anos, quando uma série de grupos femininos conservadores e anticomunistas foram fundados no Brasil, em pleno contexto de radicalização política que caracterizou a primeira metade da década. Em seu trabalho pioneiro sobre as agremiações de mulheres que surgiram no cenário brasileiro nos anos 1960, Solange de Deus Simões (1985) chamava atenção para a “novidade política” que representou a atuação organizada de mulheres no espaço público naquele período. Em geral com origem nas classes médias das grandes capitais brasileiras e ligadas à Igreja Católica e a think tanks como o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (em diante, IPES), as associações femininas eram formadas por donas de casa que se apresentavam publicamente como mães e esposas preocupadas com a infiltração comunista e seus efeitos destruidores em instituições como a família, a Igreja e a Pátria.
Dentre os principais grupos fundados no período, destacam-se a União Cívica Feminina–UCF (São Paulo), a Campanha da Mulher pela Democracia (em diante, CAMDE) (Guanabara), o Movimento de Arregimentação Feminino –MAF (São Paulo), a Liga da Mulher Democrática–LIMDE (Minas Gerais), a Ação Democrática Feminina Gaúcha–ADFG (Rio Grande do Sul) e a Cruzada Democrática Feminina–CDF (Pernambuco).[2]
O sentido da atuação pública destes grupos consistia precisamente em chamar atenção para a destruição que o comunismo causaria no modo de vida para o qual haviam sido educadas e o qual defendiam. Em estudo comparativo sobre os grupos femininos conservadores no Brasil, Chile e Estados Unidos, Margaret Power (2014, p. 70) definiu essas mulheres como “guerreiras devotas da Guerra Fria”, que se viam como “defensoras da nação, da democracia, do sistema de livre mercado, da religião e da liberdade”. Assim, é tendo em vista este contexto e a cultura típica da Guerra Fria que precisamos compreender o surgimento dos grupos femininos.
Eram, por exemplo, particularmente sensíveis ao que consideravam o poder do comunismo de desagregar as famílias e à atração que aquela “doutrina exótica” exercia sobre os jovens, seus filhos. Nesse sentido, colocavam-se em posição de vigilância eterna contra essas ameaças. Tinham clareza do fato de que o espaço natural e, portanto, preferencial de sua atuação era o privado, o lar. E apenas propunham atuar no espaço público do fazer político de forma momentânea e circunstancial: uma exceção, em função da situação de perigo vivida pelo país.
Partindo de tais premissas, as “mães brasileiras” organizadas politicamente tomaram as ruas na primeira metade dos anos 1960. À exceção do MAF, fundado ainda em meados da década anterior, os outros grupos surgiram todos no contexto de radicalização política que marcou a vida pública brasileira entre 1961 e 1964. Os mais longevos e mais atuantes foram a UCF de São Paulo e a CAMDE da Guanabara (ver, respectivamente: Sestini, 2008 e Cordeiro, 2009), ambos fundados no primeiro semestre de 1962. Foram também responsáveis pela organização das Marchas da Família com Deus pela Liberdade em São Paulo –a primeira de muitas que tomaram as ruas do país antes e depois do golpe de 1964– e no Rio de Janeiro, a maior delas, ocorrida imediatamente após o sucesso da intervenção militar e, por isso, consagrada como Marcha da Vitória.
As Marchas, que ocorreram, efetivamente, em diversas cidades do país ao longo de todo o ano de 1964 (Presot, 2004), foram consideradas o ápice da atuação feminina conservadora, inclusive pelas próprias mulheres que atuavam nas referidas associações. Também foram, constantemente, referidas por políticos e militares como justificativa para o golpe: a expressão máxima dos anseios populares para que se fizesse uma intervenção capaz de pôr fim ao governo João Goulart e salvar o país do comunismo.[3]
A ênfase nas Marchas, no entanto, tende a ofuscar a atuação engajada de alguns destes grupos ao longo de todo o governo Goulart, quando exerceram importante papel no processo de desestabilização da democracia brasileira. Mas, encobrem também o fato de que os grupos continuaram atuantes após o golpe na construção do projeto ditatorial e na defesa do regime. E era nisso que tais associações estavam empenhadas quando se juntaram, ainda em maio de 1964 à campanha Ouro para o bem do Brasil, promovida pelos Diários Associados.
Iniciada em São Paulo, em 13 de maio, a “campanha do ouro” propunha à sociedade sua colaboração para que doassem joias em apoio “à obra de reconstrução a que se dedica a Revolução”.[4] Desde o lançamento da campanha, o apoio das entidades femininas constituiu-se em um dos pilares da iniciativa. E era nesse sentido que, algumas semanas antes de a campanha ser lançada no Rio de Janeiro, as integrantes do MAF se dirigiam às mulheres da Guanabara e do Brasil pedindo seu apoio para que se engajassem no movimento, dando provas ao mundo do “ressurgimento” da Nação.
Ouro para o bem do Brasil reunia, assim, dois dentre os mais importantes segmentos da sociedade civil que tiveram papel de destaque nas articulações golpistas e na legitimação da ditadura: a grande imprensa e as entidades femininas conservadoras.
A historiografia brasileira sobre a participação da imprensa nos eventos que levaram ao golpe em 1964, bem como as relações estabelecidas ao longo de toda a ditadura entre grande imprensa e regime é relativamente ampla (Capelato, 1988; Carvalho, 2010; Kushnir, 2004). Segundo Marcos Napolitano (2017, p. 347), é notório o papel desempenhado pelos “tradicionais jornais diários brasileiros na conspiração que derrubou o presidente João Goulart”. Mais que isso, de acordo com o historiador, ao longo da ditadura, os grandes jornais brasileiros, “mesmo críticos em relação à escalada do autoritarismo de Estado, (...) nunca chegaram a romper global e totalmente com o regime militar, mantendo ora uma posição de críticos pontuais de determinadas políticas setoriais do governo, ora de interlocutores confiáveis”.
Napolitano lembra ainda que o papel de protagonistas, em 1964, foi amplamente assumido pelos donos dos jornais (Idem, idem), sem qualquer constrangimento, quando não, com certo orgulho, poderíamos acrescentar. Este era justamente o caso do grupo Diários Associados, de propriedade do empresário Assis Chateaubriand.
Em 1964, os Diários Associados era um dos maiores e mais importantes conglomerados de mídia do Brasil. Fundado em 1924, no auge de seu sucesso e expansão, os Associados chegaram a congregar 90 empresas, dentre as quais 9 emissoras de TV e 28 de rádio (Laurenza, 2008, p. 224). Em 1950, Chateubriand havia inaugurado no Brasil a quarta estação de televisão do mundo e a primeira da América Latina (Morais, 1994, p. 1218) e foi também do seu grupo que nascera a revista O Cruzeiro, um fenômeno editorial que representou um marco na modernização desse tipo de publicação no Brasil. Segundo alguns autores, O Cruzeiro chegou a alcançar tiragens de “720 mil exemplares semanais (1954), num país de quase 52 milhões de habitantes, predominantemente rural e semianalfabeto” (Laurenza, 2008, p.226).
De acordo com Fernando Morais (1994, p. 1557), biógrafo de Chateaubriand, o empresário passou a conspirar contra o governo de João Goulart ainda em 1963. Desde então, era recorrente que escrevesse e publicasse artigos em seus jornais, em tons violentos, dirigidos ao então presidente. Chateaubriand também organizava jantares em sua residência em São Paulo, onde reunia “civis e militares ostensivamente empenhados na derrubada do presidente João Goulart” (Morais, 1994, p. 1556).
Ouro para o bem do Brasil: a conjuntura de 1964 e a organização da campanha
Não foi estranho, portanto, quando menos de dois meses após o golpe, os Diários Associados lançaram, primeiramente em São Paulo, mas depois em todo o país, a campanha Ouro para o bem do Brasil. A ideia era mobilizar os vastos segmentos que apoiaram a intervenção militar, sobretudo setores populares, em torno de determinados valores caros à ampla frente civil-militar que deu o golpe em março e arrecadar doações da população para “‘recompor o lastro do Tesouro Nacional, devorado pela matilha vermelha’” (Morais, 1994, p. 1570).
Nas mídias diversas pertencentes aos Associados, chamados eram feitos para que as pessoas comparecessem às sedes dos jornais, rádios e televisões levando suas peças de ouro – alianças, colares, brincos, relógios ou mesmo obturações dentárias que não estivessem em uso – e doassem, como forma de contribuição material e simbólica para a “reconstrução nacional”. No lançamento da campanha, Edmundo Monteiro, diretor-presidente dos Diários e Emissoras Associados em São Paulo, proclamava que a iniciativa tinha
como objetivo primordial a criação de “Legionários da Democracia”, para que os autênticos democratas, nela alistados, se mantenham em constante vigilância cívica, em defesa dos postulados democráticos, já vitoriosos com a revolução gloriosa de 31 de março.[5]
Assim, em troca da sua doação, o colaborador recebia uma aliança de alumínio que o tornava um membro da “Legião Democrática”. Edérson Schmit chama atenção para a utilização da terminologia militar ao se referir à atribuição do título de “legionário da democracia” aos doadores: o contribuinte tornava-se, então, “um guerreiro da revolução, que embora não tenha dado sua vida pelo bem da pátria, daria sim seu ouro para o bem do Brasil” (Schmitt, 2021, p.65).
Em cidades do interior de São Paulo, instituições da sociedade civil como os Rotary Clubes aderiram à campanha e distribuíam aos doadores um “certificado de adesão” no qual constava os deveres dos “legionários da democracia”. Dentre os quinze pontos listados, encontravam-se entre os primeiros: “1 – lutar pela consolidação da Revolução Democrática. 2 – Combater intransigentemente o comunismo ou qualquer regime totalitário. 3 – Respeitar as leis e as autoridades constituídas” (Perazzo e Lemos, 2004, p. 39). As próprias palavras utilizadas no certificado – lutar, combater – remetiam à militarização do ritual instituído pela campanha. Portanto, ao se atribuir o título de legionário, instituindo ao doador a atribuição de deveres para com a “democracia”, consagrava-se, a partir do ato de doar o vínculo entre o legionário/soldado e a Pátria.
Sob este aspecto, a campanha Ouro para o bem do Brasil, buscava atuar no sentido de consolidar o novo regime, envolvendo a sociedade no processo de “reconstrução nacional” e incentivando o engajamento em determinadas causas: o combate ao comunismo, a defesa do que chamavam de “revolução democrática” e a recuperação econômica do país. Nesse sentido, é interessante observar que também constituíam deveres dos legionários da democracia tarefas como “combater os lucros excessivos; combater a sonegação de impostos; (...) evitar os gastos supérfluos ou além de suas possibilidades” (Perazzo e Lemos, 2004, p. 39).
Nos primeiros dias após a vitória de abril, os setores sociais que apoiavam uma intervenção militar, temerosos da ameaça comunista, foram tomados por sensações de euforia e alívio. Em certa medida, a multidão de cerca de oitocentas mil pessoas que tomaram o centro do Rio de Janeiro, no dia 02 de abril, quando da Marcha da Vitória, eram a expressão encarnada de tais sentimentos.
Euforia e alívio, porém, não resumem o estado de espírito destes amplos segmentos que apoiaram o golpe. Entre os mais engajados –políticos, militares, grande imprensa, empresariado, entidades femininas e religiosas–, reinava também a expectativa de construção do futuro e de reconstrução do país em novas bases. A compreensão sobre o que deveria ser esse futuro e, principalmente, sobre a duração da intervenção e da presença militar na vida e na res publica variava. Havia consenso, não obstante, quanto à necessidade premente de limpeza social e de saneamento político e econômico das instituições. Dito de outra forma, o comunismo era uma ameaça porque representava, a um só tempo, a destruição das bases materiais e morais do país. Combater o comunismo significava, portanto, salvar o país da corrupção e da bancarrota econômica, ao mesmo tempo em que eram resguardadas instituições como família, religião e pátria.
Sob este aspecto, o projeto político da “revolução de 1964”, como se referiam ao golpe, era justamente o de livrar o país do que consideravam um processo de decadência e de degeneração moral, política e econômica. Daí, a ideia muito recorrente, no imaginário anticomunista, que associava a ameaça comunista à corrupção, fosse dos costumes e da moral ou das instituições políticas e econômicas. Em seu estudo sobre o imaginário anticomunista no Brasil, Rodrigo Patto Sá Motta (2002) demonstra, por exemplo, que em função da “ameaça à moral representada pelos comunistas decorria eles serem tachados de dissolutos, sedutores, corruptos, mentirosos, cínicos, caluniadores e assassinos” (p. 90). Ao mesmo tempo, a ideia de corrupção aparecia frequentemente associada a práticas existentes no governo, vistas pelos anticomunistas como herança do varguismo e supostamente toleradas por Jango. De acordo com Motta, com base em fontes da época, as denúncias contra a corrupção frequentemente vinculavam esta prática à trama comunista. Os “vermelhos” seriam responsáveis por estimular a corrupção, pois através deste recurso aliciariam para o seu lado os políticos ‘(...) menos sensíveis aos fatôres moral ou cívico’” (2002, p. 334).
Desse ponto de vista, no discurso oficial da ditadura e no de seus apoiadores mais entusiasmados, desde seus primeiros momentos, estes dois aspectos –a reestruturação da economia e o expurgo de elementos e ideias considerados “estranhos” à tradição brasileira– constituíram referências indissociáveis daquilo que o regime considerava parte de sua obra de reconstrução nacional. Assim, a ideia de construção do futuro ou, mais exatamente, de reconstrução e de recuperaçãodo país passava necessariamente, naqueles primeiros momentos, pela ideia de “sacrifício”. Os “verdadeiros brasileiros” deveriam estar dispostos a sacrificarem-se pelo “bem comum” e pela pátria.
É importante destacar que a euforia flagrante que tomou conta dos setores vitoriosos em 1964 não era incompatível com o espírito de sacrifício naquele contexto. Ao contrário, a noção do sacrifício patriótico –nada estranha a um país de formação e maioria católica, no qual a ideia do sacrifício cristão exercia forte apelo–, era extremamente mobilizadora em um sentido positivo e aglutinador e foi amplamente acionada no imediato pós golpe. O próprio Marechal Castello Branco, em seu discurso de posse, em 11 de abril de 1964, associava as duas ideias, ao falar que sua “eleição pelo Congresso Nacional, em expressiva votação, traduz, sobremaneira, o pesado fardo das responsabilidades que sabia já haver assumido”. Mais adiante, justificava a sua disposição em carregar tal “fardo” em função do “calor da opinião pública, através de autênticas manifestações populares e de numerosas entidades de classe”. Ao concluir a breve saudação dirigida ao Congresso Nacional e à Nação brasileira, Castello Branco justamente associava o “espírito de colaboração” nacional à construção do futuro:
Espero, também, em me ajudando o espírito de colaboração de todos os brasileiros e o sentimento da gravidade da hora presente, possa entregar, ao iniciar-se o ano de 1966, ao meu sucessor legitimamente eleito pelo Povo, em eleições livres, uma Nação coesa e ainda mais confiante em seu futuro, a que não mais assaltem os temores e os angustiosos problemas do momento atual.[6]
Este foi, também, o espírito que animou os Diários Associados a promoverem a campanha Ouro para o bem do Brasil. Pode-se dizer que a tentativa do grupo de Assis Chateaubriand, ao lançar a campanha do ouro pouco mais de um mês depois do golpe, era canalizar tais sentimentos, transformando-os em ação de construção da “revolução gloriosa de 31 de março”. Tratava-se, ao mesmo tempo, de prolongar os sentimentos de euforia e alívio, mas então, convertendo-os em ação concreta de construção do futuro. Para tanto, a campanha também acionava o senso de sacrifício do povo, evocando o “espírito de colaboração” ao qual se referira Castello Branco, mas dessa vez em um sentido prático e direto. Os organizadores da campanha esclareciam que mais importante que a ajuda em ouro ou dinheiro, o real valor de tal empreendimento estava justamente no ato simbólico: as pessoas que se dispunham a fazer suas doações estavam, efetivamente, provando sua inteira “comparticipação (...) nos objetivos que animam o Brasil de hoje a sair das imensas dificuldades a que foi lançado por governos que mais o dilapidaram do que serviram”.[7] Assim, na publicidade dos jornais, o convite para participar da iniciativa apelava: “A democracia precisa de você”. E seguia, pedindo “uma gota de suor pela Pátria”.[8]
É importante lembrar que Ouro para o bem do Brasil era uma referência direta à campanha de mesmo nome organizada em São Paulo em 1932. Quando da Revolução Constitucionalista contra o governo de Getúlio Vargas, a Associação Comercial de São Paulo envidou esforços no sentido de mobilizar a população do estado para que doasse suas alianças de ouro e demais joias em benefício da luta travada pelos paulistas contra Vargas (Rodrigues, 2011, p. 204). A campanha rapidamente ganhou o estado e a adesão da grande imprensa, de intelectuais e da população de maneira geral que foi às ruas doar ouro “para o bem de São Paulo”. A iniciativa teve, dessa forma, um papel importante no sentido de fixar a retórica constitucionalista no imaginário coletivo paulista, justificando a campanha oposicionista contra Vargas e, ao mesmo tempo, consolidando determinado imaginário de sacrifício patriótico do povo de São Paulo. De acordo com João Paulo Rodrigues (2011, p. 204), com a campanha almejava-se “não apenas a arrecadação de fundos para o custeio das operações militares, mas a doação dos bens mais preciosos do paulista (...) para a satisfação das necessidades de uma entidade digna de culto: São Paulo”. Na imprensa da época, eram comuns também as referências ao espírito de sacrifício dos paulistas, que caracterizava a campanha como o “mais soberbo espetáculo de generosidade, civismo e renúncia” (Rodrigues, 2011, p. 205).
Assim, ao acionar, em 1964, o imaginário de 1932, os Diários Associados pretendiam fazer dos acontecimentos do tempo presente um desdobramento da história do país, inserindo o golpe como uma espécie de desfecho bem-sucedido do episódio de 1932. Ao mesmo tempo, recorria à ideia de que havia algo de exemplar no sacrifício paulista em defesa da Pátria e da constitucionalidade e que, apesar da derrota no passado, deveria ser celebrado e repetido pelos brasileiros em 1964.
De maneira mais ampla, a Revolução Constitucionalista de 1932 pode ser, de fato, compreendida como uma referência importante para os grupos comprometidos com a legitimação da ditadura em 1964. Tanto mais porque remetia a valores como a defesa da legalidade e da Constituição, muito recorrentes, simultaneamente, no discurso de civis e militares que estiveram à frente do movimento golpista. Além disso, é interessante notar –e, certamente, isso não passou despercebido em 1964– que, se em 1932 os “constitucionalistas” de São Paulo lutaram contra Vargas, naquele momento, os líderes da “Revolução” derrubaram seu principal herdeiro político: João Goulart. O então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, chegou mesmo a declarar, quando de sua participação na Marcha da Família em São Paulo, que “o espírito de São Paulo (...) a partir da Marcha é o de 1932, mas de 1932 dialético, em que as trincheiras são de paz" (Presot, 2004, p. 79).
De acordo com Aline Presot, na Marcha paulista, a memória da Revolução Constitucionalista de 1932 constituiu uma das construções imagéticas mais marcantes. Nela, “o conjunto de representações acerca de 1932 foi reelaborado, tendo seu repertório calcado especialmente no respeito à Constituição e às liberdades democráticas” (2004, p. 79). Assim, tendo em vista o imaginário político de 1964 e as tentativas de legitimar e institucionalizar o golpe como um movimento em defesa da ordem legal e democrática, os grupos civis que apoiaram a intervenção militar precisavam “inventar uma tradição” que não deixasse dúvidas a respeito da ligação da “Revolução de 1964” com o passado histórico brasileiro. Nesse sentido, 1932 deixava de ocupar espaço simbólico apenas regional e ganhava dimensões nacionais.
Os próprios órgãos dos Diários Associados noticiavam que, com a “Campanha do Ouro”, nada mais faziam que reeditar o “que o (...) povo paulista fizera em 1932, por ocasião da Revolução Constitucionalista, quando milhares e milhares de pessoas se desfizeram de suas alianças e adornos de ouro, também como hoje acontece, com o pensamento na Pátria”.[9] A campanha era, pois, uma reprodução, agora em escala ampliada, do evento de 1932, realizada por setores da sociedade civil comprometidos com o movimento de março/abril de 1964. A ideia era, portanto, mobilizar na população determinados sentimentos, os quais a ditadura e seus apoiadores diziam defender.
Mais que isso, naquele momento, era importante situar historicamente a “Revolução”, ligá-la às tradições do passado nacional. A associação com o movimento de 1932 aparecia como o mais adequado, já que, mobilizava valores como a defesa da legalidade, da ordem e da democracia,[10] Em certo sentido, representava também uma espécie de desfecho bem-sucedido da batalha iniciada por São Paulo em 1932 contra Vargas e em defesa da ordem constitucional. Assim, a ideia era a de que se os constitucionalistas do passado não conseguiram vencer a ditadura varguista; 1964 representava o definitivo fim da “Era Vargas” e do trabalhismo, com a queda de seu principal herdeiro político, João Goulart.
A Campanha do Ouro, buscava, pois, legitimar a intervenção militar na medida em que a situava diante de um passado nacional que se pretendia simultaneamente constitucionalista e antigetulista (ou antitrabalhista), afirmando esses valores em âmbito nacional. Ao mesmo tempo, procurava mobilizar esforços no sentido de colaborar com a política de “recuperação econômica” do governo. E de fato, diante do valor arrecadado pela campanha em todo país - cerca de cinco bilhões de cruzeiros–,[11] não se pode dizer que a população tenha ficado indiferente. Além disso, filmes da época[12] mostram as imensas filas que se formavam diante dos postos de doação. Na Guanabara, ao fim do terceiro dia de trabalho,[13] noticiava o afluxo crescente de doadores, destacando que “não houve um só momento em que o Cine Odeon tivesse escasso número de pessoas” e chamava atenção também para a presença de pessoas “de todas as categorias sociais, numa renovação do cunho nitidamente popular que caracteriza a campanha”. Em Guarulhos, no estado de São Paulo, a campanha contou com a adesão de uma série de associações civis e, no dia da inauguração, um desfile com participação do Corpo de Bombeiros e de diversas instituições de ensino da cidade tomaram as ruas. No palanque principal que recebia as doações, as urnas foram abençoadas pelo padre Geraldo Penteado de Queiroz.[14]
Na Guanabara, Ouro para o bem do Brasil instalou-se no dia 01 de junho. Dias antes, no Jornal do Commercio, podia-se ler o anúncio sobre a chegada da campanha. Em destaque, o jornal afirmava que “Ninguém pode ficar indiferente” e exortava os cariocas a participarem de uma “campanha nacional pela CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA”. Apelando também ao sentido patriótico do ato de colaborar, caracterizava a campanha como “um movimento que traduz PATRIOTISMO” e pedia a doação de alianças, peças de ouro ou mesmo “um dia ou horas de trabalho”.[15] Chamava atenção também para o fato de que o início da campanha na cidade do Rio de Janeiro teria uma “instalação festiva – com transmissão direta da TV Tupi e participação de grandioso elenco artístico”.[16]
Vale lembrar que, em 1964 a televisão era algo ainda muito recente no Brasil e a Tupi, de propriedade de Assis Chateaubriand, era o mais popular canal de TV da época. Ao disponibilizar seu “grandioso elenco” para a abertura da campanha do ouro na Guanabara, Chatô dava demonstrações do investimento que fazia para popularizar a campanha. Não obstante, na mesma publicidade do Jornal do Commercio em que era anunciada a participação do elenco da TV Tupi na festa de abertura da campanha do ouro na Guanabara, destacava-se também a “colaboração das ASSOCIAÇÕES FEMININAS do Estado da Guanabara e outras entidades”.[17]
A colaboração das mulheres
A rigor, as referências ao apoio das associações femininas à campanha do ouro eram muito recorrentes. No começo da campanha, em São Paulo, a publicidade também destacava que se tratava de uma promoção dos Diários e Emissoras Associados “com a colaboração das mulheres de São Paulo”.[18] Também por isso, foi o Movimento de Arregimentação Feminina (MAF) que dirigiu pessoalmente o convite às “mulheres da Guanabara” para que aderissem à campanha, conforme indicado no início do artigo. De volta à Guanabara, O Jornal anunciava que a “mulher brasileira apoia decididamente a campanha ‘Ouro para o bem do Brasil’” e ia adiante, explicando que:
A contribuição feminina merece especial destaque, por demonstrar o empenho democrático de quem corajosamente se engajou na luta contra os inimigos das liberdades humanas, numa hora de grave perigo para a nacionalidade. É, assim, uma continuação da luta pela democratização do Brasil.[19]
Assim, apenas na cidade do Rio de Janeiro, a campanha teve adesão de mais de vinte entidades femininas, as quais compunham a “comissão de fiscalização”. À frente dessas entidades estava a CAMDE que concordou em “fiscalizar durante todo o tempo de realização da campanha [...] os cofres instalados no saguão do Cine Odeon”.[20]
Cabe aqui uma pergunta: por que os Diários Associados, um dos maiores conglomerados de mídia do país, recorreu com mais ênfase às “mulheres brasileiras” do que ao seu “grandioso elenco” para levar à cabo a campanha? Para compreender a centralidade que as entidades femininas adquiriram na Campanha do Ouro, talvez seja necessário refletir sobre o papel simbólico que as mulheres obtiveram na narrativa construída pelas direitas conservadoras em 1964 para justificar o golpe. Sem, para tanto, deixar de considerar sua efetiva capacidade de mobilização social naquele momento.
Muito cedo apareceu na retórica da ampla frente envolvida no golpe e na construção da ditadura a ideia segundo a qual a intervenção militar veio atender aos apelos das “mães ou das mulheres brasileiras”. Nesse sentido, é interessante observar o trecho do livro de Rodrigues Matias, produzido ainda em 1964 e que contava a história das Marchas da Família com Deus pela Liberdade em São Paulo, Santos e Rio de Janeiro. O autor dirigia-se aos jovens e explicava:
Alguém te dirá um dia, porventura, que a revolução brasileira de 31 de março de 1964 foi uma arrancada de ricos contra pobres, de patrões contra operários. Por este livro saberás o quanto isto é falso. A revolução autêntica não se deu a 31 de março, mas a 19 de março. Foi tua mãe quem a fez, pensando em ti, para que tu continuasses livre e em regime de livre iniciativa pudesses construir o futuro esplendoroso do grande Brasil de amanhã (Matias, s/f. Grifos meus).
Assim, imediatamente após a vitória do golpe, a ideia de acordo com a qual a “revolução” havia sido feita pelas mulheres ganhou força. Aliás, mais que pelas mulheres, pelas mães brasileiras. Uma forma, ao mesmo tempo, de justificar o golpe – afinal, como deixar de atender ao pedido de mães aflitas? – e de dar ao movimento civil-militar algo de sagrado: não se tratava de meras articulações ou conspiração política. Também não podia ser reduzido, conforme o autor, a explicações materialistas e mundanas. Não se tratava de luta de classes, mas, antes, de um movimento que tinha à frente mães preocupadas com o futuro de seus filhos, com o futuro da Pátria. Nada mais sagrado, portanto, do que atender aos clamores maternos.
Em suma, ao dar ênfase ao papel das mulheres, justificava-se a intervenção contra Goulart não como um golpe militar, mas como uma “revolução redentora”, atendendo às súplicas de mães brasileiras que marchavam, país afora, pedindo pela salvação da Pátria. Afinal, como negar o pedido de mães que deixavam seus lares, ainda que temporariamente, em defesa das instituições? Como os homens poderiam cruzar os braços enquanto as mulheres estavam nas ruas?
A atuação feminina adquiriu, assim, um papel central como elemento simbólico. Mas não apenas. Entre 1962 e 1964, a forte presença pública das entidades femininas conservadoras demonstrou sua efetiva capacidade de mobilização da opinião pública através da organização de cursos e palestras e a partir da sensibilização da população para suas causas, exercendo pressão sobre parlamentares através de envios massivos de cartas e telegramas ao congresso, da organização de protestos e passeatas (Cordeiro, 2009, p. 28), as quais culminaram nas mobilizações que resultaram nas Marchas da Família em 1964.
Foi, precisamente em função destes dois aspectos – o simbólico e a capacidade das entidades femininas mobilizarem a opinião pública – que se tornou importante para os Diários Associados contarem com a participação dos grupos femininos na campanha Ouro para o bem do Brasil. Assim, as figuras feminina/materna emprestavam legitimidade a uma campanha que se dirigia à população para exigir sacrifício. Mais ainda: para pedir dinheiro. Quem doaria ouro atendendo ao pedido de um rico empresário como Assis Chateaubriand? Quantos estariam dispostos a sacrificarem seus pertences em nome de uma demanda feita pelo “grandioso elenco” da TV Tupi ou mesmo por políticos e militares que aderiram à campanha? Por outro lado, quem haveria de negar um pedido da mãe brasileira? A mesma mãe que estava, já há alguns anos “nas trincheiras” (Cordeiro, 2009, p. 41) em defesa da Pátria e da família?
Justamente por isso é que, ao anunciar a realização da campanha em Santa Catarina, o jornal O Estado apresentava a CAMDE catarinense como fiadora da iniciativa naquele estado.[21] Da entidade feminina, o periódico dizia que se tratava de um “órgão inteiramente apartidário, tendo em seu coração o mais nobre e elevado ideal” e, ao fim, conclamava: “Mulheres democráticas, nós brasileiros de todas as categorias sociais, aguardamos ansiosos vossa palavra de ordem para juntos ajudarmos os Brasileiros a ajudarem o Brasil”.
Em outra ocasião, o mesmo jornal, ao se dirigir aos catarinenses pedindo suas doações, solicitava que colaborassem com a “campanha de reabilitação moral e financeira lançada pela CAMDE”.[22] Ou seja, as associações femininas tornavam-se espécies de fiadoras da campanha. Mas, eram também exemplo. Pois se a campanha pretendia atingir camadas diversas da população – e, sob este aspecto, parece ter alcançado seus objetivos –, o exemplo deveria vir de cima e, particularmente, deveria vir das mulheres da sociedade. Foi assim que o Diário da Noite destacou na capa da sua edição do dia 15 de maio o “exemplo” dado pela primeira-dama do estado de São Paulo, Leonor Mendes de Barros, que se dirigiu pessoalmente à sede dos Diários Associados “para recolher ao cofre a aliança e outras peças”.[23] O mesmo jornal, poucos dias depois, dava ênfase à participação de Bia Coutinho, a quem descrevera como “nome líder da sociedade paulistana” ou “porta-voz legítima da sociedade de nossa terra”, que ao se juntar à campanha, fazia uma avaliação muito positiva do evento: “Eu tinha certeza de que todos responderiam ao apelo dos ‘Diários Associados’ e aqui estamos colaborando, cada um dentro das suas possibilidades, para um Brasil de amanhã muito melhor”. E conclamava “cada senhora paulista” a dar “10 telefonemas para pessoas amigas, convidando-as a contribuir com ouro, dinheiro e cheques na campanha ‘Ouro para o bem do Brasil’”,[24] recorrendo a uma arma muito utilizada pelos grupos femininos em suas estratégias de mobilização da opinião pública: o telefone.
É preciso destacar, contudo, que as mulheres e mães a que os Diários Associados se referiam e a quem recorriam para legitimar sua campanha correspondiam a um grupo muito específico de mulheres. A rigor, ao apelarem às associações femininas conservadoras como símbolo da “revolução de 1964” e fiadoras da campanha do ouro, reforçavam e reafirmavam um modelo particular de feminino, cujos elementos fundamentais – a centralidade dos papeis de mãe, esposa e dona de casa, além da predisposição ao sacrifício – encontravam-se profundamente arraigados na sociedade e no imaginário patriarcal brasileiro, de maneira mais ampla. Mas que, no contexto específico de consolidação do pacto ditatorial, adquiria características próprias. A luta contra o comunismo talvez seja o principal destes elementos, mas havia outros. Podemos compreender, por exemplo, a forçosa saída das mulheres ao espaço público para defender interesses privados como outra característica importante. Em seu trabalho sobre a UCF de São Paulo, Dharana Pérola Sestini afirmava que existiu “no Brasil dos anos de 1960 um projeto de ‘mulher brasileira’ em vigor entre os setores conservadores das camadas médias e altas. Uma mulher dócil, elegante, caridosa, religiosa e que ocupa um lugar social específico: o espaço doméstico” (2008, p. 9).
Era essa a mulher exemplar, fiadora da campanha dos Diários Associados: talhadas para ocuparem o espaço privado, educadas para exercerem os papeis de mães, esposas e donas de casa, elas eram consideradas, quando muito, o cimento que ligava o espaço privado ao público. Sua presença nas ruas era fundamental, sobretudo tendo em vista as ameaças impostas pelo que era percebido como o avanço do comunismo. Não se tratava, contudo, de celebrar a presença política das mulheres nas ruas, mas sim de chamar atenção para a gravidade da ameaça que assombrava o Brasil, de tal ordem que obrigara as mães brasileiras a trocarem seus lares pelas ruas. O que era destacado e conferia importância a esta presença era justamente a condição de grupo “apartidário”,[25] de seres privados, maternos, sagrados e, por isso, apolíticos que se mobilizavam para salvar o país.
Em algum sentido, sua presença pública era percebida de forma muito similar àquela a partir da qual Michelet compreendia a participação das mulheres que tomavam parte na Festa das Confederações durante a Revolução Francesa:
Elas se aproximam, escutam, entram com lágrimas nos olhos, também querem estar ali. Então relêem a mensagem para elas; elas aderem de todo o coração. Essa profunda união entre família e pátria trouxe a todas as almas um sentimento desconhecido (como citado em Perrot, 2006, p. 174).
Podemos dizer que, no Brasil durante a primeira metade dos anos 1960, os grupos femininos constituíram-se como representação de um determinado tipo de feminilidade profundamente ancorado nas tradições e no imaginário do ocidente moderno sobre o lugar das mulheres na sociedade. Tais representações encontraram respaldo sobretudo entre segmentos conservadores da sociedade. A militância e presença pública das entidades femininas conservadoras definia-se em torno de determinados aspectos que remetiam justamente à “profunda união entre família e pátria” da qual nos falava Michelet ainda em meados do século XIX.
Considerações finais
A exaltação desse determinado modelo de feminilidade pela direita comprometida com a ditadura nos primeiros momentos após o golpe de 1964 e durante os primeiros anos do regime demonstrou-se extremamente importante não apenas para justificar o golpe, mas para reunir a sociedade em torno de um determinado projeto autoritário. Sob este aspecto, a imprensa teve papel fundamental: os grandes jornais brasileiros cederam, desde a fundação dos primeiros grupos femininos, no início da década de 1960, grande espaço em suas páginas à divulgação de suas agendas, atuação e mensagens. A Campanha do Ouro sintetiza muito bem como a imprensa viu nos grupos femininos, em 1964, uma forma de angariar apoio ao projeto político que encarnava, junto à ampla frente civil e militar, vitoriosa naquele ano. Mas este não foi o único momento, tampouco, os Diários Associados foram o único órgão a divulgar as ações das mulheres conservadoras. Muito da atuação da UCF em São Paulo não teria tido o impacto que teve sem sua constante presença nos jornais da cidade, em particular, n’O Estado de São Paulo. O mesmo pode ser dito sobre a CAMDE e O Globo, na Guanabara.
Após a vitória do golpe, em 1964, a narrativa construída sobre as mulheres na grande imprensa tendeu a atribuir aos grupos femininos o “verdadeiro protagonismo” dos acontecimentos que levaram ao golpe. Foi o que ocorreu, por exemplo, quando o jornal O Globo concedeu o título de mãe do ano de 1964 à dona Amélia Molina Bastos, presidente da CAMDE da Guanabara. Desde a década de 1950, o periódico carioca atribuía o prêmio de mãe do ano a uma mulher, escolhida pela equipe do jornal, por ocasião do Dia das Mães. Em 1964, a escolha de dona Amélia “regia-se pela necessidade de legitimar o golpe a partir da atuação sagrada das mães brasileiras” (Cordeiro, 2019, p. 188). O ápice desse processo de atribuição de protagonismo às mulheres no imediato pós-golpe foi, certamente, a Campanha do Ouro.
As mães e mulheres brasileiras, assim, evocadas como agentes decisivos da “revolução”, tornaram-se, depois do golpe, fiadoras do processo de construção do pacto ditatorial, profundamente calcado em seus primeiros momentos nas ideias de sacrifício e doação, frequentemente associadas também à maternidade e ao ser mulher. Nesse sentido, a campanha Ouro para o bem do Brasil soube acionar perfeitamente o imaginário coletivo nacional sobre o lugar da mulher e, especificamente, soube acionar a narrativa que conferia à mulher brasileira a liderança dos eventos de 1964. Nesse sentido, representou muito bem uma das formas a partir das quais, a partir de 1964, as associações femininas – sintetizando um determinado modelo de mulher brasileira – contribuíram para a consolidação da ditadura militar no Brasil.
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Notas