Dossier

O associativismo feminino católico e a proteção às jovens trabalhadoras na cidade do Rio de Janeiro na década de 1920: a Associação das Senhoras Brasileiras e a liderança de Stella de Faro (1888-1972)

Asociaciones de mujeres católicas y protección de jóvenes trabajadoras en la ciudad de Río de Janeiro en la década de 1920: la Asociación Brasileña de Damas y el liderazgo de Stella de Faro (1888-1972)

Catholic women's associations and protection of young women workers in the city of Rio de Janeiro in the 1920s: the Brazilian Association of Ladies and the leadership of Stella de Faro (1888-1972)

Ana Paula Vosne Martins
Universidade Federal do Paraná, Brasil

Avances del Cesor

Universidad Nacional de Rosario, Argentina

ISSN: 1514-3899

ISSN-e: 2422-6580

Periodicidade: Semestral

vol. 19, núm. 27, 2022

revistaavancesdelcesor@ishir-conicet.gov.ar

Recepção: 09 Julho 2021

Aprovação: 28 Dezembro 2021

Publicado: 05 Dezembro 2022



DOI: https://doi.org/10.35305/ac.v19i27.1695

Financiamento

Fonte: Este artigo é resultado de pesquisa financiada pelo CNPq como bolsista de produtividade, Processo 305464/2018-3.

Resumen: Este artículo trata de la acción social católica hacia la juventud femenina obrera en los contextos europeo y brasileño de fines del siglo XIX e inicios del siglo XX. La presencia de obreras jóvenes — las cuales buscaban mejores trabajos y sueldos — en las ciudades europeas y en la ciudad de Río de Janeiro movilizó el clero y las mujeres católicas hacia la organización de acciones de protección y educación profesional. Buscamos comprender el significado del trabajo femenino para el liderazgo femenino católico, así como el alcance de sus acciones, con fines de demostrar el proceso de adaptación del conservadurismo a los cambios económicos, culturales y de normas de género.

Palabras clave: asociativismo femenino, conservadurismo, catolicismo, trabajo.

Abstract: This article discusses the social catholic action towards young female laborers in the European and Brazilian contexts of the end of the 19th and begining of the 20th centuries. The presence of young female laborers pursuing better jobs and wages both in european cities and in the city of Rio de Janeiro encouraged the local clergy and catholic women to organize actions of welfare and professional education for those. This article seeks to understand the meaning of female labor for the catholic female leadership as well as the scope of its actions, with the purpose of demonstrating the process of adaptation of conservatism to changes in culture, economics and gender norms.

Keywords: female associativism, conservatism, catholicism, labor.

Introdução

No dia 20 de agosto de 1920 foi fundada na cidade do Rio de Janeiro, Distrito Federal, a Associação das Senhoras Brasileiras (adiante, ASB), uma organização católica subordinada à Arquidiocese, com diretoria composta majoritariamente por mulheres da elite local. Esta associação nasceu devido a uma orientação do primeiro Cardeal do Brasil e Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Joaquim Arcoverde Albuquerque Cavalcanti (1850-1930), mais conhecido como Cardeal Arcoverde, com uma finalidade bem específica: a ação social para a proteção e formação de jovens mulheres1 trabalhadoras na cidade do Rio de Janeiro.

Cardeal Arcoverde, de rigorosa formação ultramontana, estava em sintonia com as orientações da Santa Sé e de autoridades religiosas de outros países quanto à necessidade de uma sólida e bem organizada ação social, não só para os operários, mas também para as crianças e a juventude pobre e trabalhadora. A ação social católica deveria ser organizada e dirigida por homens e mulheres laicos sob a autoridade eclesiástica, a desempenhar seu apostolado entre a infância e a juventude que, segundo os discursos da restauração cristã, estariam ameaçadas não só pelos impactos da pobreza, como também pelos inimigos da fé, da religião e da Igreja Católica, além dos perigos a que estariam expostos estando distantes do controle familiar e sem a orientação da moral cristã. (Cholvy, 1982)

Havia muitas mulheres envolvidas nas obras paroquiais e associações devocionais desde meados do século XIX no Brasil, mas com a Proclamação da República em 1889 e a separação da Igreja e do Estado, um novo laicato masculino e feminino começou a ser organizado, mais atuante nos centros urbanos maiores. Algumas mulheres tiveram protagonismo público reconhecido e apreciado pelas autoridades eclesiásticas, como também por suas redes de sociabilidade de elite, mobilizadas em favor da recristianização da sociedade brasileira. Uma destas mulheres foi Stella de Faro (1888-1972), de família da elite, descendente da nobreza imperial pelo lado paterno e materno, educada na religião católica no Colégio Notre Dame de Sion. Ela se tornou a principal liderança feminina do movimento laico e da Ação Católica Brasileira a partir das décadas de 1920 e 1930. (Martins, 2016)

Stella de Faro foi uma defensora ardorosa da religião, da Igreja e do clero, dedicando-se desde muito jovem ao associativismo feminino e à divulgação dos valores e orientações da Igreja por meio da imprensa católica. Ela tinha o perfil da militante, convicta da verdade de sua religião e de que as mulheres católicas tinham um importante papel a desempenhar na restauração cristã e no ordenamento da sociedade segundo um plano superior e divino. Este papel feminino não era passivo, nem simples, muito menos individual. Era um papel multifacetado, exigindo formação religiosa, intelectual, moral e disposição para a ação combativa, por meio das associações e pelo uso da palavra pública. Portanto, não foi somente por um pertencimento de classe que Stella de Faro foi indicada pelo Cardeal Arcoverde para presidir a nova associação católica feminina que se fundava naquele dia 20 de agosto de 1920, mas porque era considerada um modelo de ação e de mulher católica que os novos tempos exigiam, uma mulher ativa, combativa, obediente ao clero e incansável na defesa da religião e da Igreja.

Neste artigo procuramos entender a ação social e o protagonismo público de mulheres como Stella de Faro e suas contemporâneas como expressões da agência feminina conservadora. O enfoque dado pela história das mulheres aos movimentos e organizações contestatórios, ao feminismo e às trajetórias biográficas de suas lideranças, acabou por relegar ao esquecimento um movimento conservador bastante diversificado e numericamente expressivo em diferentes países da Europa e das Américas, quase sempre motivado pela identidade religiosa, de classe e de gênero. Em diálogo com a produção historiográfica mais recente a respeito deste amplo movimento feminino conservador (Dumons, 2002; Della Suda, 2007; 2011; Duriez, Rota y Vialle 2019; Machen, 2019), este artigo busca compreender uma de suas áreas privilegiadas de atuação, o associativismo feminino católico para a proteção e formação profissional de jovens mulheres trabalhadoras.

Assim, a primeira parte do artigo apresenta a enunciação do discurso defensor das “obras de proteção às moças” desde o final do século XIX nos países europeus, obras organizadas em rede internacional e de orientação religiosa e feminina. Na segunda parte do artigo trazemos esta discussão sobre o trabalho feminino e a proteção de jovens mulheres solteiras para o Brasil, tomando como referência a ASB e sua presidente, a militante católica Stella de Faro.

As aporias do trabalho feminino: proteção e oportunidade

“Pas de jeune fille sans profession, la profession c'est la protection !” (Montenach, 1912, p. 245)

No século XIX o trabalho feminino se tornou um dos muitos desafios da chamada questão social. As mulheres das classes populares – camponesas e trabalhadoras urbanas – sempre trabalharam com suas famílias, portanto o trabalho muitas vezes árduo e pesado não era estranho às mulheres dos meios populares. No entanto, o trabalho doméstico-familiar não remunerado não suscitou críticas ou maiores comentários de observadores dos costumes – religiosos, escritores, moralistas, filantropos – afinal, para os discursos normativos de gênero e classe, mulheres do povo precisavam trabalhar junto às suas famílias para se manterem, contanto que fosse um trabalho adequado à natureza e às capacidades femininas, ou seja, o trabalho realizado nos próprios lares, ou mesmo remunerado, como criadas e serviçais nas residências das famílias das classes dominantes. (Hall, 2013)

Esta adequação do trabalho feminino foi subvertida, segundo os discursos de gênero da época, quando as mulheres e as crianças tiveram que sair do espaço doméstico e familiar para vender sua força de trabalho no expansivo sistema de fábrica, configuração histórica do capitalismo a partir da segunda metade do século XVIII e que se consolida em diferentes lugares do mundo durante o século XIX, alterando profundamente a história da organização e exploração do trabalho. (Hobsbawm, 1987; 1997; Polany, 2000) A divisão entre o trabalho doméstico não remunerado e o trabalho remunerado nas oficinas e fábricas, provocou reações de diferentes sujeitos, dos setores mais conservadores, ao nascente movimento organizado dos trabalhadores nos sindicatos e mesmo entre os socialistas. A convergência destas diferentes orientações ideológicas estava na inadequação do trabalho feminino remunerado, fosse por ser considerado uma ameaça moral às mulheres, fosse por representar uma divisão entre os trabalhadores devido aos baixos salários das trabalhadoras que pressionavam as reivindicações sindicais, fosse pelo rechaço moral à presença feminina nas fábricas e conseqüente “abandono” do lar e das tarefas domésticas, como se pode constatar inequivocadamente nas reflexões críticas de Engels a respeito da situação da classe trabalhadora em seu livro publicado em 1845. (Hobsbawm, 1987; Engels,1985)

Mesmo sendo rechaçado pela maior parte dos críticos à direita e à esquerda do espectro ideológico, o trabalho feminino remunerado era uma realidade incontornável, ou como alguns afirmavam, um mal necessário frente às pressões econômicas sobre as classes trabalhadoras e o mercado de trabalho. Apesar das resistências e das críticas, as mulheres solteiras e um crescente número de mulheres casadas, passaram a constituir a mão de obra assalariada.

Nos setores ideologicamente conservadores as críticas ao trabalho feminino se dividiam em duas direções. Primeiro, o impacto social e moral representado pela saída das mulheres sobre a família, uma instituição central no discurso conservador a respeito da ordem social e da preservação dos costumes. Segundo, a vulnerabilidade feminina pelo acesso ao espaço público não mediado pela família ou por um homem, especialmente as jovens que precisavam sair de suas comunidades e migrar do campo para as cidades, ou mesmo emigrar para outros países em busca de oportunidades de trabalho e salários mais atraentes. (Machen, 2019)

As associações filantrópicas femininas com orientação religiosa passaram a se ocupar deste grupo social que demandava assistência material como abrigos, alimentação e apoio para colocação em empregos respeitáveis, mas também assistência moral, educacional e espiritual. Mulheres de diferentes religiões se mobilizaram para receber e orientar as jovens que não só buscavam trabalho, mas que estavam sozinhas, distantes de suas famílias, ou que eram estrangeiras. As associações protestantes, judaicas e católicas começaram suas atividades por volta da década de 1850, mas se expandiram depois da década de 1870 em diferentes cidades e países europeus, americanos e orientais. Uma dessas associações internacionais é a Young Women’s Christian Association (adiante, YWCA), criada na Inglaterra em 1855 e logo presente nos Estados Unidos, Canadá muitos outros países. No Brasil, a Associação Cristã Feminina, extensão da YWCA, foi fundada em 1920.

Nos marcos do catolicismo social, as mulheres de elite passaram a se dedicar ao associativismo, prática que não era estranha às católicas, mas até então muito restrita à devoção ou à caridade, como as Damas de Caridade, ramo feminino laico dos vicentinos. (Fayet-Scribe, 1990) O espírito de missão ou de dever social, mais do que a caridade, esteve portanto, presente nas associações católicas femininas de proteção e orientação das jovens mulheres trabalhadoras. Escritores imbuídos do caráter de missão do catolicismo social passaram a escrever livros e artigos na imprensa católica, estimulando as mulheres de elite a se envolverem com as obras para proteger as jovens trabalhadoras, como o escritor Eugène Flornoy (1860 – s.d.) e o professor e escritor Max Turmann (1866-1943).

Em seu livro intitulado Initiatives Féminines, Turmann (1905) reserva boa parte ao apostolado social como parte de um processo de conquista da alma feminina, afirmando que uma questão urgente dizia respeito às meninas e às moças. O autor destaca as trabalhadoras, citando trabalhos e estatísticas que demonstravam o notável crescimento de mulheres casadas e solteiras trabalhando nas fábricas.

Turmann e seus contemporâneos consideravam o trabalho feminino uma necessidade dos tempos modernos, mas seus custos morais e de saúde eram muito elevados para as mulheres. No entanto, todos aqueles intelectuais e militantes da ação social católica foram unânimes em afirmar que as piores consequências do trabalho feminino se abatiam sobre a família, desorganizada com o afastamento das mulheres de seus deveres de esposas e mães. Apesar de Turmann condenar os salários inferiores das mulheres para as mesmas funções que os homens exerciam e de não se opor de maneira reacionária ao trabalho feminino, ele e outros intelectuais católicos não estavam tão preocupados com as condições das trabalhadoras e nem pensavam em uma educação que as preparassem para funções mais qualificadas e melhor remuneradas, ou mesmo para a profissionalização feminina. Seu foco de atenção estava na família e no impacto que o trabalho das mulheres teria sobre seus deveres familiares e para o declínio do casamento quando se referia às trabalhadoras solteiras.

Flornoy, por sua vez, em artigo publicado 1908 em importante publicação católica suíça, Les Echos de Saint Maurice, constata uma realidade: a família operária não tinha mais um lar estável para manter as crianças e os jovens. A necessidade e o desejo de conseguir salários mais dignos empurravam as jovens mulheres para fora de seus lares, distantes de suas famílias. Flornoy foi um pouco mais atento às expectativas das jovens do que Turmann, que trata somente das pressões econômicas e morais. Flornoy afirma que as jovens já não consideravam seus lares atraentes e sonhavam com o desconhecido, com a liberdade de viver em cidades maiores, com mais oportunidades de emprego, mas também de amizades e de lazer, ou seja, de uma vida mais intensa e estimulante. Mesmo as jovens da pequena burguesia foram tragadas pelo movimento que levava as jovens a se afastarem de suas famílias em busca de empregos e de novas experiências. Flornoy antevia neste movimento um grave perigo para jovens inexperientes, ingênuas, sozinhas, sonhadoras, portanto presas fáceis para homens inescrupulosos e sedutores que poderiam levá-las à perdição, ao vício e mesmo à ruína física e moral. Elas precisavam de socorro, afirmava Flornoy, e este socorro deveria ser prestado pelas mulheres católicas de boa formação religiosa e moral. (Flornoy, 1908, p.263)

Neste mesmo artigo o autor diz que alguns esforços vinham sendo feitos para proteger as jovens trabalhadoras, no entanto, eram ações isoladas e a situação requeria ações coordenadas e ramificadas por diferentes países. Flornoy se referia à iniciativa de Madame Louise de Reynold, uma aristocrata da cidade de Fribourg, na Suíça, muito conhecida por sua dedicação às obras de benemerência. Em 1896 ela propôs à sua comunidade patrícia a fundação de uma associação benemerente, a Obra Católica de Proteção à Moça, com apoio de oito bispos suíços e da elite local. O objetivo da nova associação era fornecer serviços de apoio e cuidados para as jovens que viajavam dentro da Suíça ou para fora de suas fronteiras em busca de emprego, ou mesmo para estudar. Um ano mais tarde a associação havia se expandido por outras cidades suíças e em outros países, como a Áustria e a Alemanha, tornando-se em 1897 a Associação Católica Internacional das Obras de Proteção à Moça (adiante, ACI) uma organização federada com comitês locais e nacionais que se expandiram pelos países europeus, americanos e na Rússia.

Segundo Flornoy, o caráter internacional da ACI se devia ao fato de que o movimento das jovens mulheres em busca de trabalho e de estudos cruzava as fronteiras nacionais. A ação federada das muitas obras de proteção às jovens colocaria as suas dirigentes em contato por meio da troca epistolar, de material informativo, de propaganda e por meio dos congressos realizados a cada dois anos nos respectivos países onde a ACI tivesse comitês nacionais.

A secretária geral da ACI e depois sua presidente por 36 anos, Baronesa Suzanne de Montenach (1867-1957), foi a porta-voz desta ação protetora e uma incansável defensora do associativismo católico feminino. Suzanne de Montenach foi uma reconhecida oradora, sendo muito próxima ao clero e aos intelectuais católicos, tendo publicado alguns artigos também na revista suíça Les Echos de Saint Maurice, todos em defesa do associativismo feminino e da proteção às jovens mulheres. (Meuwly-Galley, 1998) Quando esta revista alterou seu nome para L’Eveil, em 1912, o editor publicou uma conferência que Suzanne de Montenach pronunciou no Congresso da ACI ocorrido na cidade francesa de Dijon, em 1910, cujo tema foi a jovem e o trabalho.

Neste artigo a baronesa de Montenach assume uma posição sutilmente diferente de intelectuais católicos como Flornoy e Turmann que escreveram sobre o trabalho feminino, defendendo a necessidade da formação profissional como sendo o grande desafio da assistência promovida pelas obras de proteção à moça. Suzanne de Montenach não se alinhava às ideias das feministas liberais a respeito da independência feminina. Para ela o trabalho remunerado não era almejado, mas uma realidade e um problema difícil que exigia conhecimento e método de ação. O tempo em que as jovens trabalhavam em casa cuidando das crianças, do jardim, dos animais domésticos, da costura e de todos os muitos trabalhos “naturais” de uma dona de casa e mãe, este tempo havia passado. Sem maiores detalhes históricos, a baronesa refere-se a uma mudança avassaladora que levou as mulheres a saírem de suas casas e a competir com os homens em ocupações antes exclusivas a eles. Refere-se ao “exército de solitárias”, moças solteiras que não conseguiam se casar devido às pressões da necessidade, vendo-se obrigadas a viver sós para trabalhar. Montenach articulava em seu discurso uma visão conservadora a respeito do trabalho feminino, que desestruturava a família ao dificultar o casamento mas, ao mesmo tempo, manifestava preocupação com as condições das trabalhadoras, defendendo a ação social católica para a profissionalização do trabalho feminino.

A ACI não era, segundo Montenach, uma obra de caridade, embora devesse socorrer as desempregadas e as doentes que a procurassem. Seu principal objetivo era encaminhar as jovens para o trabalho digno e profissional, sob orientação católica.2 Foi para cumprir este objetivo que a ACI organizou, em todos os países onde estivesse presente, escritórios de colocação em empregos, casas de abrigo para que as jovens tivessem segurança e aconselhamento, e os serviços de recepção e propaganda em estações de trens e nos portos, para informar as jovens imigrantes e viajantes sobre os serviços prestados pela ACI. Também ofereciam os serviços de restaurante, cursos profissionalizantes, círculos de estudos e mutualidades femininas.

Montenach destacava um aspecto do trabalho que também era objeto das críticas feministas e das socialistas desde meados do século XIX, a exploração das trabalhadoras em empregos mal remunerados e sem qualificação profissional. Neste sentido, seu discurso conservador a respeito do lugar das mulheres se abria para a educação e a formação profissional, não interpretando o trabalho somente como ganha-pão a qualquer custo, mas como oportunidade de realização e mesmo liberação pessoal. Montenach afirma, no artigo, que servir mesas em cafés, arrumar chocolates em prateleiras de lojas ou ensinar francês para crianças ricas de outros países não eram profissões, mas ocupações semi-profissionais que mantinham as jovens em condições muito precárias e dependentes, correndo o risco de serem influenciadas por más companhias ou mesmo capturadas por redes de traficantes de mulheres. Seu objetivo pessoal e da ACI era aumentar as oportunidades de acesso às ocupações profissionais que trouxessem segurança econômica. Só a profissão poderia dar a verdadeira proteção às jovens, conforme a frase que Montenach escreve ao encerrar seu artigo e que citamos acima.

No entanto, antes de considerar Montenach uma conservadora com simpatias feministas, faz-se necessário entender o que ela e suas companheiras da ação social católica entendiam por trabalho profissional e por independência. O conservadorismo católico de Montenach se revela ao tratar dos limites do trabalho feminino e de qual seria a melhor profissão para as jovens. É importante ressaltar que Montenach não trata do trabalho remunerado das mulheres casadas, afinal, para os católicos como ela o trabalho da mulher casada era no lar e todos os esforços deveriam ser feitos para que os salários dos homens fossem suficientes para manter a família e para a mulher não ter que sair de casa para trabalhar. Montenach não trata das condições de trabalho de mulheres casadas cujos maridos não conseguiam manter a família, ou daquelas que tinham que aceitar trabalhos por tarefas em suas casas para complementar a renda familiar, como as costureiras. O casamento e a maternidade faziam parte do destino natural das mulheres, conforme estabelecia a doutrina católica, sendo Montenach uma defensora ardorosa do casamento como a mais segura proteção para as mulheres. Portanto, coerente com estas ideias, se por extrema necessidade a mulher casada tivesse que trabalhar fora de casa, o trabalho não deveria ser incompatível com o casamento.

As profissões mais adequadas às jovens mulheres seriam aquelas que não as afastassem de seus deveres quando pudessem se casar, ou seja, o trabalho de professora e todas as ocupações relacionadas aos cuidados, especialmente as ocupações derivadas dos cuidados domésticos. É importante dizer que Montenach, como a maioria dos intelectuais católicos do final do século XIX, tinham uma definição bastante estreita de profissão para as mulheres. Da mesma forma que a filantropia era vista como uma extensão das qualidades femininas para fora do espaço doméstico, o trabalho feminino estava circunscrito a uma definição de feminilidade ancorada no espaço doméstico, portanto as profissões que poderiam ser exercidas pelas mulheres seriam aquelas derivadas de habilidades e práticas já conhecidas na esfera doméstica.

Montenach não deixa margens para dúvidas em relação a este assunto. Se as mulheres de todas as classes sociais deviam aprender, desde pequenas, todos os cuidados de uma casa, este aprendizado poderia ser profissionalizado, oportunizando empregos que fossem, portanto, compatíveis com os deveres das mulheres e o casamento. Estas ideias pavimentaram a criação das escolas domésticas em diferentes países europeus e Montenach defendia que fossem criadas tanto pelo poder público, quanto pela benemerência privada. As escolas domésticas poderiam formar diferentes profissionais, como costureiras, cozinheiras, preceptoras de crianças e mesmo preparar as jovens para seguir a profissão de enfermeira. Cada aspecto do trabalho doméstico poderia orientar a formação profissional, inclusive professoras das escolas domésticas, como também cursos que preparassem as jovens para desempenhar funções no comércio e nos serviços públicos, como redação, contabilidade, datilografia, estenografia e matemática. (Clement, 1908)

Desta forma, a experiência da ACI, apoiada pelo clero e pelas classes privilegiadas, procurou associar as antigas práticas benemerentes de proteção com as novas práticas voltadas à formação profissional para jovens mulheres solteiras. Adequando-se à realidade das pressões econômicas e às expectativas das jovens em ampliar suas oportunidades de vida, a ACI procurou orientá-las por meio de apoio material, educativo e pela proteção moral por meio dos aconselhamentos, dos círculos de estudos e principalmente pela definição do trabalho feminino compatível com o casamento e os futuros deveres que as jovens teriam como esposas e mães.

A proteção católica às jovens trabalhadoras brasileiras

O debate que até aqui expusemos em linhas gerais a respeito da assistência às jovens trabalhadoras nos países europeus chegou mais tardiamente ao Brasil. Isto se deve a alguns fatores. Primeiro, a participação feminina na composição da mão de obra assalariada no Brasil se concentrava majoritariamente na agricultura, conforme se depreende dos dados apresentados nos Recenseamentos Populacionais de 1872 e 1920. A diversificação dos setores da economia começou a ocorrer a partir do final do século XIX, mas a participação feminina nestes setores foi bastante desigual, com números mais expressivos de trabalhadoras na indústria têxtil da região sudeste do país e no setor dos serviços domésticos remunerados e não remunerados. (Brasil, 1872; 1920)

Outro fator importante foi a rejeição ao trabalho feminino remunerado num país como o Brasil, no qual as elites manifestavam seu desprezo pelo trabalho manual, associado ao regime escravista que perdurou até 1888, ano da abolição da escravidão no país. As mulheres que precisavam trabalhar eram negras ex-escravizadas ou descendentes de escravizados, e mulheres brancas pobres, marcadas pelos preconceitos de classe e de raça, em sua maioria sem escolaridade alguma. A situação das mulheres ricas e das classes médias era um pouco melhor no que diz respeito à alfabetização e à escolaridade. No Brasil, a elite branca e masculina não considerava necessário educar as meninas e as jovens mulheres, com alguma exceção ao aprendizado da leitura e noções de história sagrada e nacional, além de rudimentos de aritmética, necessários para a leitura do catecismo, o cuidado das contas domésticas e, no caso das mulheres de elite, também se considerava útil aprender música, francês ou outro idioma, além das noções de etiqueta que a vida social requeria. A educação feminina preconizada mesmo após a Proclamação da República continuou a ser direcionada para o cuidado da casa, das crianças e os trabalhos manuais. (Besse, 1999)

Entre as décadas de 1890 e 1920 a paisagem social e econômica passou por mudanças significativas no Brasil, especialmente nas regiões sudeste e sul, que concentravam o pólo econômico mais dinâmico da economia agro-exportadora, a industrialização e a urbanização. As demandas por mão de obra para os novos setores da economia, bem como a crescente valorização da educação por parte de alguns setores da intelectualidade brasileira, abriram novas oportunidades de emprego para as mulheres. É certo que estes empregos ainda se concentravam na indústria, com salários muito baixos e condições precárias de trabalho, mas novos postos começaram a se abrir no comércio e nos escritórios de empresas privadas, que passaram a requerer o trabalho de secretárias, datilógrafas, contadoras, bem como nas repartições do serviço público. Portanto, nesse novo cenário, a educação profissional se tornou uma necessidade, não só para as mulheres que buscavam melhores funções e salários, mas igualmente para os diversos agentes sociais empenhados na modernização do país, de perfil ideológico republicano e liberal, como também os setores mais conservadores e críticos da modernização, como os católicos.

As escolas profissionais femininas começaram a ser criadas na década de 1910 no Distrito Federal e em algumas outras capitais dos Estados brasileiros. No entanto, o significado de profissão nas escolas femininas era muito restrito à educação doméstica, como artes manuais, culinária, higiene doméstica, noções de puericultura, visando formar as meninas e jovens pobres para empregos domésticos remunerados ou mesmo futuras donas de casas, incluindo, neste caso, as meninas das classes médias, pois escolas profissionais femininas não foram exclusivas para meninas pobres, sendo freqüentadas também por meninas e jovens de classes médias que buscavam uma educação doméstica formal e escolar. Nos anos 1920 o ensino profissional feminino passou por uma reformulação no país, incluindo no currículo matérias como matemática, português, geografia, história do Brasil, física, química, higiene, além das disciplinas práticas de costura, bordados, chapéus, rendas e culinária. (Reis, Martinez, 2012, p.36)

A demanda por mão de obra nas cidades e a formação profissional, mesmo que ainda limitada a uma definição doméstica de profissionalização feminina, contribuiu para uma mudança significativa na paisagem urbana a partir dos anos 1910 e 1920 no Brasil: a circulação de mulheres jovens e sozinhas pelas cidades, em busca de empregos, ou a caminho de seus trabalhos, a pé ou nos bondes, nos cafés e restaurantes, uma presença que parecia ser indício de uma sociedade que se modernizava, mas que também suscitava preocupação nos setores mais conservadores.3

Da mesma forma que nos países europeus, no Brasil se formula um discurso católico reformador preocupado com a formação educacional e religiosa da juventude feminina, especialmente das classes trabalhadoras, que pareciam estar mais ameaçadas pelas inovações educacionais republicanas e pelos apelos às novidades por meio da imprensa, da moda, dos espetáculos teatrais, da literatura e principalmente dos costumes mais relaxados. Na Europa, como vimos, a preocupação era com o deslocamento de jovens mulheres do campo para as cidades, de cidades pequenas para cidades maiores, ou a emigração. No Brasil do começo do século XX a preocupação recaía sobre jovens trabalhadoras que vinham morar sozinhas no Rio de Janeiro, então a maior cidade do país, em busca de melhores oportunidades e mesmo de formação educacional, ou aquelas que por morarem nos subúrbios tinham que permanecer no centro da cidade por muitas horas, sem poder voltar para casa para fazer as refeições, tendo que pagar por elas em ambientes considerados promíscuos e perigosos para jovens solteiras desacompanhadas. A questão mais grave para os católicos, não era tanto a exploração do trabalho ou a má qualificação profissional —questões que apareciam sutilmente nos discursos da época— mas a ameaça moral que pairava sobre jovens sozinhas perambulando pela cidade.

A preocupação com a direção moral e espiritual de meninas pobres inspirou algumas iniciativas religiosas ainda no século XIX, como a fundação da Escola Doméstica Nossa Senhora do Amparo, na cidade de Petrópolis, em 1871, pelo padre João Francisco de Siqueira Andrade. Esta escola foi criada para receber meninas órfãs e filhas de mulheres escravizadas, uma escola que deu oportunidade de educação e formação profissional para meninas negras. (Leal, 2017)

Outra iniciativa da qual se tem escassas informações foi a Obra de Proteção às Moças Solteiras, no Colégio da Imaculada Conceição, primeira escola para meninas na cidade do Rio de Janeiro, dirigida pelas religiosas da congregação das Filhas de Caridade de São Vicente de Paulo. Na Revista Apostolado das Filhas de Maria no Brasil, de fevereiro de 1913, foi publicado um artigo da editora Stella de Faro, anunciando a inauguração desta Obra no dia 31 de janeiro daquele ano. Além das religiosas de São Vicente de Paulo e do visitador dos padres lazaristas, Padre Eugênio Pasquier, a Obra teve apoio do então Bispo Auxiliar do Rio de Janeiro, Dom Sebastião Leme, e de vários homens e mulheres da elite local.

Segundo a transcrição do discurso do Barão Brasílio Machado, um dos conselheiros da Obra, feita por Stella de Faro na revista, se depreende que esta iniciativa tinha objetivos semelhantes aos da ACI:

Num momento em que aportam de todos os países às plagas hospitaleiras do Brasil punhado de jovens que vêm pedir ao trabalho honesto um meio de subsistência, quiçá impossível na própria pátria, é de suma importância a criação dessa obra que o orador chamou de higiene moral. É destinada a arrancar as pobres estrangeiras ou as nossas próprias patrícias vindas do interior às explorações baixas que as esperam se não forem dirigidas desde que pisam o nosso solo. À obra de proteção que é eminentemente social, compete essa direção, deve fornecer às moças inexperientes e isoladas do aconchego da família, um home, um lar [favorecido] pelos sãos princípios da moral cristã, onde se possam acolher quando doentes ou desempregadas; deve proporcionar-lhes o trabalho ou ao menos indicação de casas que, sem perigo, possam honestamente ganhar o pão.4(Faro, 1913, p. 99)

Mesmo não havendo informações posteriores a respeito do funcionamento desta obra católica para as moças solteiras, a intenção e os objetivos expostos acima demonstram como havia a mesma interpretação a respeito da proteção especial que jovens estrangeiras e brasileiras requeriam dos católicos.

Esta mesma preocupação esteve presente na iniciativa da Irmã Vicência Tourinho, uma religiosa das Filhas de Caridade de São Vicente de Paulo, de família da nobreza imperial. Ela fundou em 1918 a Escola Commercial Feminina, com a finalidade de proporcionar uma educação prática às jovens com ensino de português, matemática e escrituração comercial, para se qualificarem a empregos no comércio e escritórios de empresas. Junto à escola, Irmã Vicência organizou um pequeno restaurante, para que as freqüentadoras da escola pudessem ter refeições a preços acessíveis, seguindo o modelo das obras da ACI. Com o apoio de uma católica muito atuante nas obras de caridade, Maria Luiza Dantas, a escola passou a ter a proteção e o apoio da Arquidiocese do Rio de Janeiro, através do seu vigário geral, Monsenhor Maximiano Leite, e do próprio Cardeal Arcoverde.

Em artigo publicado dois anos depois, por ocasião da fundação da Associação das Senhoras Brasileiras, Stella de Faro se referiu à Escola Commercial Feminina, reiterando que Irmã Vicência não visava outra coisa a não ser o apostolado social em favor da mulher desprotegida. Segundo Stella, Irmã Vicência teve que se ausentar da Escola para se dedicar à enfermagem na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, mas deixou um plano que continuaria com a ASB. Este plano se sustentava em quatro fundamentos:

1- dar à moça que precisa trabalhar uma formação prática, um pouco enérgica, que desenvolva nela uma iniciativa própria e valor pessoal; 2- fornecer à moça que se emprega uma alimentação sadia para manter seu organismo, talvez depauperado pelas lutas e pelas privações; 3- dar um lar e certo conforto às moças desamparadas, cercando-as de pessoas que lhes mostrem interesse e afeição; 4- facilitar-lhes consultar bons médicos e obter os remédios indispensáveis. A falta dessas condições de vida é a causa eficiente da maioria das quedas.5

Com o afastamento da Irmã Vicência da direção da Escola Commercial Feminina, Monsenhor Maximiano Leite, por orientação do Cardeal Arcoverde, procurou Stella de Faro para que ela dirigisse uma nova associação católica feminina, dando continuidade e, ao mesmo tempo, fortalecendo e ampliando a obra iniciada pela religiosa, bem como o apostolado social entre as jovens que buscavam trabalho digno e honesto.

Havia outras católicas muito conhecidas e respeitadas por seu envolvimento nas obras de devoção e de caridade na cidade do Rio de Janeiro, algumas delas vinham de famílias leais à Igreja Católica desde a crise instaurada com o fim da Monarquia e a separação da Igreja e do Estado a partir da Proclamação da República. Por que Stella de Faro, à época com 32 anos, foi escolhida pela Arquidiocese do Rio de Janeiro para dirigir uma associação feminina de ação social? Primeiro, porque Stella de Faro era de uma destas famílias leais à Monarquia e à Igreja que se envolveram com o projeto de recristianização da sociedade para restaurar o poder da Igreja Católica. Segundo, porque Stella de Faro teve uma rígida educação católica iniciada na família e confirmada no Colégio Sion, no qual sua irmã mais velha, Isabel, fez os votos para ingressar na congregação. Também porque Stella tinha experiência com obras de caridade, acompanhando sua mãe e tias nas obras com as quais colaboravam. Por fim, e talvez o principal motivo, seja o fato de que desde os tempos em que estudou no Colégio Sion, Stella se envolveu ativamente com o movimento laico, sendo da União Pia das Filhas de Maria e dando início à sua defesa incansável da religião e da Igreja Católica como editora da revista desta associação devocional, a Revista Apostolado das Filhas de Maria no Brasil, a partir de 1912, dando à publicação um perfil bastante combativo em favor dos bons costumes, das boas leituras, das obras de caridade, da educação e das virtudes femininas. Portanto, além de ser de uma família católica da elite, Stella já havia, aos 32 anos, se tornado uma pessoa de confiança e uma referência moral e de ativismo católico.

Em seu discurso por ocasião da fundação da ASB, publicado no jornal católico A União, Stella explica que ao receber o convite do Cardeal e do Vigário Geral da Arquidiocese para presidir a nova associação, teve dúvidas se estava à altura da missão que a ela parecia ser superior às suas forças. No entanto, compenetrada do momento de luta que os católicos viviam, em particular os católicos brasileiros, e que um soldado como ela não devia fugir da luta, obedeceu e aceitou o convite do Cardeal Arcoverde.

No discurso, Stella se refere às ameaças da heresia protestante, que lançava suas redes para atrair as moças sem uma formação católica firme, inseguras, solitárias. Conclamava as senhoras católicas que auxiliassem a nova obra, que não seria somente uma escola, mas um lar para as jovens. Certamente Stella se referia à fundação da Associação Cristã Feminina, ocorrida em junho de 1920, que se apresentou ao público pela imprensa como uma associação sem vinculação a nenhuma religião ou igreja. Os católicos reagiram imediatamente à nova instituição cujos objetivos eram muito semelhantes às obras católicas para a juventude feminina, considerando-a protestante e mobilizando as mulheres católicas a reagirem à sua influência sobre as jovens brasileiras.

Fala-se tanto em solidariedade e em filantropia! No entanto, gasta-se sem contar, em luxo e em divertimentos... e o que se faz em prol da mulher? Oh, não. Não deixemos que nos tome a dianteira nessa obra social as nossas irmãs que a heresia nefasta arrancou do seio da verdadeira Igreja; e trabalhando para que não se deixem levar à heresia as nossas patrícias, combatamos o bom combate e peçamos a Deus que ilumine as almas que se debatem nas trevas da ignorância e do erro, para que em breve não haja mais que um só rebanho e um só Pastor.6

Criada a ASB em 1920, logo iniciou suas atividades num pequeno prédio de três pavimentos no centro da cidade do Rio de Janeiro, na Rua São José, e anos depois na Rua da Quitanda. A diretoria foi composta pelos sócios fundadores, Monsenhor Maximiano Leite, Maria Luiza Dantas e Hermínia Franklin Sampaio, a presidente Stella de Faro, a vice- presidente Margarida Ponce de Leon Leite, a secretária Francisca Bicalho e a tesoureira Joaquina Monteiro de Leão. Havia um Conselho Especial formado por Theodosia de Castro Maia e Isabel Freitas, o Conselho Fiscal composto por dez mulheres e o Conselho Honorário composto por sete mulheres. No primeiro relatório da ASB apresentado em 1923, havia entre os sócios benfeitores várias mulheres católicas da elite local, párocos, representantes do Apostolado da Oração e das Filhas de Maria de diferentes paróquias, das Senhoras de Caridade e de outras associações religiosas, o que demonstra o resultado afirmativo do apelo que a Arquidiocese fez a todos os católicos em favor da ASB. Também há uma lista neste relatório com 397 cooperadoras e 75 sócias contribuintes. (Faro, 1923)

Para cumprir seu plano de assistência às jovens trabalhadoras, a ASB foi organizada em departamentos: Residência, Escola Comercial, Restaurante, Agência de Trabalho e de Colocações. A escola comercial da ASB tinha como objetivo preparar as jovens para trabalhar como contadoras, oferecendo também cursos de português, francês, inglês, matemática, escrituração mercantil, datilografia, taquigrafia. Estes cursos eram ministrados por professores e professoras renomados na cidade, todos participantes da ação católica. O restaurante fornecia refeições por preços acessíveis não só para as jovens que freqüentavam a escola comercial, mas para mulheres que por qualquer motivo estivessem no centro da cidade e desacompanhadas. Já a residência fornecia hospedagem para jovens que estivessem fora de suas cidades para procurar trabalho, ou para estudar. No primeiro relatório não há maiores informações sobre a residência, mas no relatório comemorativo dos dez anos da ASB, publicado em 1931, Stella de Faro fez um comentário mais extenso. A residência tinha vagas para 150 moças. O tempo de hospedagem variava conforme as necessidades das pensionistas, entre alguns meses a dois anos, sendo um ambiente familiar e amistoso, segundo a presidente. (Faro, 1931, p.9)

A Agência de Trabalho era um espaço de exposição dos trabalhos manuais realizados pelas jovens, com trabalhos de costura, bordados, chapéus e rendas. Estes trabalhos manuais eram vendidos numa exposição anual realizada pela ASB com a participação das mulheres da elite, um evento noticiado com destaque pela imprensa. A Agência também contratava encomendas de trabalhos que podiam ser realizados pelas jovens artesãs, uma forma de garantir renda para aquelas que não tinham emprego ou que desejavam se manter com este tipo de trabalho artesanal. A Agência também aceitava encomendas de trabalhos de datilografia e de tradução, dando oportunidade às jovens assistidas pela ASB de colocar em prática os conhecimentos adquiridos nos cursos da Escola Comercial enquanto não conseguiam um emprego.

O Bureau de Colocações recebia solicitações de empregos pelas jovens que procuravam a ASB. O relatório de 1931 informa que naquele ano houve 110 solicitações e 27 contratações. Neste relatório, Stella de Faro comenta que a discrepância entre solicitações e contratações se devia ao fato de que muitas jovens tinham dificuldades em assumir compromissos e responsabilidades nos empregos, abandonando a vaga que a ASB havia conseguido. Para Stella, muitas jovens eram impulsivas e não queriam se submeter à disciplina que o trabalho exigia, especialmente em instituições assistenciais que colaboravam com a ASB.

Apesar das dificuldades, a ASB foi muito reconhecida e elogiada pela imprensa e o meio católico do Rio de Janeiro, sendo considerada uma associação modelar e bem sucedida pela proteção moral da orientação católica de sua presidente e da diretoria, mas também pelas oportunidades de emprego com melhores salários à juventude feminina trabalhadora. Um de seus mais destacados defensores foi Dom Sebastião Leme, então bispo coadjutor do Rio de Janeiro. No livro sobre a ação católica, Dom Leme reforçava a necessidade de assistência às jovens trabalhadoras do comércio, às operárias e aquelas que exerciam trabalhos domésticos remunerados, defendendo o ensino profissional conforme realizado pela ASB e pela Escola Profissional Santo Adolpho, esta última criada em 1921 sob a direção das religiosas da congregação Filhas de Maria Imaculada, para formar empregadas domésticas.

Ainda sobre a ASB, Dom Leme orientava uma ação diferenciada do principal objetivo educativo e assistencial. Refere-se à necessidade de que fosse também um espaço de formação para as próprias senhoras católicas, voltado para o conhecimento da religião e da ação social.

Que compreendam os deveres sociais da mulher na ação católica e para o cumprirem se preparem em recinto mais vasto do que o das associações de piedade. De par com a instrução religiosa elevada, recebam também a chamada cultura social, isto é, a instrução a respeito do movimento social contemporâneo. (...) A Associação das Senhoras Brasileiras, arquidiocesana que é, está destinada a ser o nervo de coesão de todo o nosso movimento social feminino. A todas as instituições femininas recomendamos que auxiliem a ASB, enviando pontualmente as quotas estabelecidas. (Leme, 1935, p. 149)

Esta idéia de formação nos assuntos sociais —a cultura social— e de fortalecimento da religião entre as mulheres era corrente no movimento católico internacional, como vimos. Uma de suas ardorosas defensoras foi a Baronesa de Montenach, em alguns de seus artigos nos quais reconhecia que as protestantes eram mais preparadas nos assuntos da religião e da questão social do que as católicas, sendo necessário organizar e participar de círculos de estudos. Stella de Faro também concordava com esta crítica:

O nosso cristianismo é anêmico; nossa piedade formalista, sem base nem fundo. Sabemos de cor (quando sabemos) a letra do catecismo sem lhe procurar sondar e penetrar o espírito profundo. A nossa inteligência mal esclarecida não obedece a princípios seguros; nossos atos não se pautam por convicções; falta-nos têmpera, energia, caráter, minhas senhoras! (Faro, 1928, p. 4)

Estando de acordo com as orientações pastorais do clero e tendo conhecimento das publicações católicas e do movimento feminino internacional, Stella defendia um novo papel para as mulheres, mantendo o equilíbrio entre a obediência e a ação no mundo, entre a submissão às autoridades masculinas, civis e religiosas e a afirmação do valor e das capacidades das mulheres. Em dois artigos publicados alguns anos antes de presidir a ASB, Stella tratou de um tema que não era muito comum entre os católicos brasileiros, que insistiam mais nas virtudes da modéstia, da piedade e da caridade, do que nas capacidades femininas para o conhecimento e a ação. Os dois artigos tratam da inteligência feminina. Para ela a mulher tinha o mesmo direito ao conhecimento que o homem. As mulhereres deveriam ser esclarecidas pelo estudo e pelo acesso à cultura intelectual.

No entanto, não bastavam os bons colégios. Stella defendia uma educação superior às mulheres, não uma educação universitária, mas uma esmerada educação intelectual por meio da leitura de bons livros e da participação em espaços de debates de ideias, como os círculos de estudos e as conferências. Em um dos seus artigos chegou a expor um plano para esta educação superior: filosofia, para prevenir-se dos sofismos, estudo aprofundado da língua materna e da literatura nacional e estrangeira, noções de estética e o cultivo de alguma arte, como a música. Para Stella, a formação intelectual das mulheres não se opunha ao casamento e à maternidade e para aqueles que assim pensavam, Stella afirmava:

Além de um erro, isso é uma injustiça. É uma injustiça porque [a mulher] tendo seu destino próprio, tem direito aos gozos puros da inteligência. É um erro porque o desenvolvimento intelectual da mulher não é inútil ou mesmo prejudicial à felicidade do lar. (...) É preciso que a mulher se interesse realmente pelos altos problemas que preocupam homens inteligentes e se ligam à vida das sociedades, o que supõe o gosto do estudo e o hábito de certa cultura intelectual. (Faro, 1914, pp. 222-223)

Stella de Faro foi uma conservadora, não há dúvida, leal à Igreja e obediente ao clero. No entanto, mais do que simples devota, obediente e passiva, Stella representava o novo modelo de mulher católica que se difundia pelo mundo à época, defensora da religião e pronta para atuar, como religiosas e como laicas, no chamado apostolado social, com seu caráter de missão e de militância. É certo que este novo modelo não foi seguido pela maioria das mulheres católicas brasileiras, para lamento de lideranças como Stella de Faro e algumas outras, pois não se organizou no Brasil um movimento feminino católico de massa, como em alguns países europeus. (Della Suda, 2007) Mas, o trabalho de organização e de assistência desenvolvido por mulheres como Stella de Faro, revela uma face não só do conservadorismo feminino, mas igualmente do estímulo da religião à agência das mulheres.

No que diz respeito à ação social para a proteção e formação de jovens trabalhadoras, a caridade poderia ter, a princípio, levado Stella e suas companheiras da ASB a se mobilizar pela causa, mas defendemos que havia mais em jogo do que a caridade. Jovens mulheres eram vistas por suas benfeitoras como um grupo social vulnerável por sua origem de classe e pelo gênero, carentes de proteção. Mas, esta proteção não visava tirá-las das ruas, ou impedi-las de procurar trabalho e de melhorar suas condições de vida, como seria um movimento reacionário, de retorno a uma ordem de gênero que precisava ser restaurada. Stella de Faro e suas contemporâneas da ação social católica foram dogmáticas, mas não reacionárias. Elas sabiam que o trabalho feminino era uma realidade e procuraram se adaptar dando-lhe uma orientação religiosa sutil e uma formação profissional pragmática para que as jovens conseguissem empregos melhores. Desta forma, a ASB foi uma moderna escola conservadora, atenta, ao mesmo tempo, para os valores tão caros ao catolicismo, e para as exigências que a vida moderna urbana e o mercado de trabalho impunham às mulheres.

Por fim, no que diz respeito ao papel desempenhado pelas protetoras, também se observa uma adaptação às mudanças sociais e culturais, sendo Stella de Faro um exemplo paradigmático. Stella permaneceu solteira e vinha de uma família de posses. Terminou seus estudos no Colégio Sion, tendo formação de professora, profissão que assumiu em diferentes momentos em escolas católicas, mas nunca dependeu economicamente do seu trabalho, desempenhado como parte de seu engajamento na ação católica. Stella se envolveu em várias frentes, como a assistência social, a imprensa, o movimento político católico e a organização do movimento laico feminino. Foi uma defensora ardorosa das escolas de serviço social, sendo professora e depois diretora da primeira escola de serviço social católica do Rio de Janeiro, o Instituto Social, fundado em 1937. Além da atuação laica, Stella ingressou para a vida religiosa na década de 1930, na congregação Sociedade das Filhas do Coração de Maria, estado que poucas pessoas conheciam, pois esta congregação não adotava hábito e nem exigia que as religiosas vivessem na casa geral. Stella foi a primeira Filha do Coração de Maria a fazer os votos no Brasil, tendo feito seu noviciado na França. (Martins, 2021)

Stella de Faro foi uma mulher que viveu de acordo com os valores conservadores católicos, mas sua biografia é reveladora de uma capacidade que ela compartilhou com muitas outras militantes católicas da época: a capacidade de adaptar os seus valores conservadores às necessidades e aos desafios que as transformações sociais e culturais impunham, sem, com isso, negar seus princípios e valores. No que diz respeito ao trabalho e à educação, Stella de Faro não adotou o discurso retrógrado sobre o trabalho feminino como ameaça ao casamento. Ela mesma não se casou, trabalhou e apoiou a formação para o trabalho das jovens mulheres, embora defendesse o casamento, a maternidade e o cultivo das virtudes. Stella e suas companheiras da ação católica sabiam que não era possível voltar no tempo e que era sua missão orientar as mudanças, ter controle possível e imprimir uma marca católica neste movimento que empurrava as mulheres para o mundo do trabalho, fosse por necessidade, fosse por desejo de independência e liberdade.

Conclusão

Neste artigo demos destaque para duas mulheres que mesmo não tendo se conhecido pessoalmente, compartilharam os mesmos valores, defenderam as mesmas causas e se engajaram nos mesmos movimentos. Suzanne de Montenach e Stella de Faro ainda participaram da mesma associação internacional, a União Internacional das Ligas Católicas Femininas, da qual a primeira foi a representante da ACI, enquanto Stella de Faro foi a representante brasileira a partir de 1935 por ser a dirigente da ASB e a liderança feminina da Ação Católica Brasileira.

Mulheres como elas fizeram parte de um movimento laico internacional bastante atuante, expandindo as fronteiras de ação, como também as margens de atuação das mulheres católicas, que até meados do século XIX estiveram mais restritas às obras de caridade e associações devocionais. Entre as várias frentes que atuaram desde inícios do século XX tratamos aqui da proteção às jovens mulheres trabalhadoras, um grupo social que passou a chamar a atenção da filantropia e da ação social católica por apresentar um conjunto de desafios sociais e morais a respeito do lugar das mulheres em sociedades com aceleradas mudanças econômicas e culturais. Processos migratórios não só desestabilizaram sociedades camponesas e tradicionais da Europa, mas colocaram novos problemas à ordem de gênero frente à maior liberdade e mobilidade de jovens mulheres em busca de empregos, estudo e uma nova vida nas cidades.

A presença de jovens sozinhas nas cidades representava um desafio aos valores morais conservadores, afinal jovens mulheres deviam estar sob a proteção de suas famílias, mesmo que fossem trabalhadoras. Elas deveriam estar sob uma tutela, preferencialmente masculina. A saída das jovens mulheres de seus lares, distantes da autoridade e da proteção familiar, criava uma situação material e imaginária nova, que demandava a organização da ação social, como o fizeram as mulheres católicas, as quais analisamos neste artigo, em busca de soluções para proteger as jovens trabalhadoras.

Quanto à situação material das jovens, procuraram atender a falta de abrigo, alimentação, informações, colocação em empregos e a formação profissional. Já a situação imaginária dizia mais respeito às inquietações morais relativas ao trânsito de jovens mulheres sozinhas. Talvez esta tenha sido a questão mais preocupante e que tenha mobilizado consciências e a organização do clero e das senhoras católicas. Usamos o conceito de imaginário porque as inquietações morais se ancoravam muito mais numa expectativa de ameaça, de desvio de condutas e de perdição. Este imaginário moral esteve muito presente nos discursos dos religiosos e das senhoras católicas, especialmente das duas mulheres que destacamos neste artigo.

É importante sublinhar a dimensão moral do trabalho feminino e da presença das jovens trabalhadoras porque expressa o quadro dos valores conservadores das mulheres e da ação social católica. Entretanto, o conservadorismo, que poderia representar uma forte limitação aos serviços e aconselhamentos prestados por organizações como a ACI e a ASB, não impediu um importante movimento: a participação mais qualificada das mulheres no mercado de trabalho, ampliando oportunidades no setor de serviços, com salários melhores e condições de trabalho mais dignas do que o trabalho das operárias e das empregadas domésticas, por exemplo.

Stella de Faro e Suzanne de Montenach estavam convictas que o melhor lugar para as mulheres era o lar e o casamento, exercendo seus deveres de esposa, dona de casa e mãe. No entanto, as transformações econômicas e culturais levaram as jovens a buscar outras oportunidades, fosse por necessidade, fosse pelo desejo de uma vida mais atraente nas cidades grandes. Desta forma, o conservadorismo das senhoras católicas teve que se adaptar à realidade social e econômica das jovens trabalhadoras, adotando uma estratégia de orientação e de cuidados para que o trabalho não fosse uma ameaça, mas a verdadeira proteção que a formação católica poderia dar.

Agradecimentos

Este artigo é resultado de pesquisa financiada pelo CNPq como bolsista de produtividade, Processo 305464/2018-3.

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Notas

1 Neste artigo usamos a expressão “jovens mulheres” para definir o público assistido pelas obras de proteção às trabalhadoras, as mulheres jovens e solteiras. A palavra “moça” foi utilizada nos documentos de época e na língua portuguesa se refere à condição de solteira, mais do que à juventude das mulheres. Na língua portuguesa, a palavra moça também pode se referir a uma mulher jovem que trabalha no comércio como vendedora, atendente de uma repartição pública ou de outra instituição privada. Muito diferente do uso da palavra “senhorita”, de uso mais formal e para designar mulheres solteiras de uma família. Moça, também, tem uma conotação sexual em português: significa mulher virgem.
2 A ACI e a ASB não atendiam somente jovens católicas, mas o aconselhamento e a orientação moral se sustentavam na religião católica. Jovens de outras religiões podiam frequentar as residências, restaurantes e cursos daquelas associações, mas não podiam fazer proselitismo religioso.
3 É importante dizer que mulheres de classes médias urbanas começaram a frequentar escolas de ensino médio e universidades. O Recenseamento de 1920 mostra um crescimento notável de mulheres atuando em profissões que exigiam formação universitária, como a medicina, advocacia, engenharia, odontologia e também escritoras e jornalistas. Não tratamos desta formação profissional neste artigo porque o enfoque é sobre a assistência às jovens trabalhadoras de classes populares e de classe média baixa.
4 Não foi possível encontrar outras informações sobre a Obra de Proteção à Moça Solteira. Não há outras notícias nesta revista e tampouco na imprensa da cidade do Rio de Janeiro.
5 Faro, S. . Discurso da Sra. Stella de Faro, Presidente da Associação das Senhoras Brasileiras, na bênção da sede social. A União. 9 de dezembro de 1920, p. 2.
6 Faro, S.. Discurso da Sra. Stella de Faro, Presidente da Associação das Senhoras Brasileiras, na bênção da sede social. A União. 9 de dezembro de 1920, p. 2.
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